ELIANE BRUM

Eliane Brum, jornalista,
escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e
de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes
e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O
olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).
elianebrum@uol.com.brTwitter:@brumelianebrum
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
A
volta dos indígenas à pauta do país tem gerado discursos bastante reveladores
sobre a impossibilidade de escutá-los como parte do Brasil que têm algo a dizer
não só sobre o seu lugar, mas também sobre si. Os indígenas parecem ser, para
uma parcela das elites, da população e do governo, algo que poderíamos chamar
de “estrangeiros nativos”. É um curioso caso de xenofobia, no qual aqueles que
aqui estavam são vistos como os de fora. Como “os outros”, a quem se dedica
enorme desconfiança. No processo histórico de estrangeirização da população
originária, os indígenas foram escravizados, catequizados, expulsos, em alguns
casos dizimados. Por ainda assim permanecerem, são considerados entraves a um
suposto desenvolvimento. A muito custo foram reconhecidos como detentores de
direitos, e nisso a Constituição de 1988 foi um marco, mas ainda hoje parecem
ser aqueles com quem a sociedade não índia tem uma dívida que lhe custa
reconhecer e que, para alguns setores – e não apenas os ruralistas –, seria
melhor dar calote. Para que os de dentro continuem fora é preciso mantê-los
fora no discurso. É isso que também temos testemunhado nas últimas
semanas.
Entre os
exemplos mais explícitos está a tese de que não falam por si. Aos estrangeiros
é negada a posse de uma voz, já que não podem ser reconhecidos como parte.
Sempre que os indígenas saem das fronteiras, tanto as físicas quanto as
simbólicas, impostas para que continuem fora, ainda que dentro, é reeditada a
versão de que são “massas de manobra” das ONGs. Vale a pena olhar com mais
atenção para essa versão narrativa, que está sempre presente, mas que em
momentos de acirramento dos conflitos ganha força.
Desta
vez, a entrada dos indígenas no noticiário se deu por dois episódios: a morte
do terena Oziel Gabriel, durante uma operação da Polícia Federal em Mato Grosso
do Sul, e a paralisação das obras de Belo Monte, no Pará, pela ocupação
do canteiro pelos mundurucus. O terena Oziel Gabriel, 35 anos, morreu com um
tiro na barriga durante o cumprimento de uma ordem de reintegração de posse em
favor do fazendeiro e ex-deputado pelo PSDB Ricardo Bacha, sobre uma terra
reconhecida como sendo território indígena desde 1993. Pela lógica do discurso
de que seriam manipulados pelas ONGs, Oziel e seu grupo, se pensassem e agissem
segundo suas próprias convicções, não estariam reivindicando o direito
assegurado constitucionalmente de viver na sua área original. Tampouco estariam
ali porque a alternativa à luta pela terra seria virar mão de obra barata ou
semiescrava nas fazendas da região, ou virar favelados nas periferias das
cidades. Não. Os indígenas só seriam genuinamente indígenas se aceitassem
pacífica e silenciosamente o gradual desaparecimento de seu povo, sem perturbar
o país com seus insistentes pedidos para que a Constituição seja cumprida. Aí
já há uma pista para o que alguns setores da sociedade brasileira entendem como
identidade “verdadeira”: ser índio seria, quando não desaparecer, ao menos
silenciar.
No
caso dos mundurucus, questionou-se exaustivamente a legitimidade de sua
presença no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, por estarem “a 800
quilômetros de sua terra”. De novo, os indígenas estariam extrapolando
fronteiras não escritas. Os mundurucus estavam ali porque suas terras poderão
ser afetadas por outras 14 hidrelétricas, desta vez na Bacia do Tapajós, e pelo
menos uma delas, São Luiz do Tapajós, deverá estar no leilão de energia
previsto para o início de 2014. Se não conseguirem se fazer ouvir agora, eles
sabem que acontecerá com eles o mesmo que acabou de acontecer com os povos do
Xingu. Serão vítimas de um outro discurso muito em voga, o da obra consumada. A
trajetória de Belo Monte mostrou que a estratégia é tocar a obra, mesmo sem o
cumprimento das condicionantes socioambientais, mesmo sem a devida escuta dos
indígenas, mesmo com os conhecidos atropelamentos do processo dentro e fora do
governo, até que a usina esteja tão adiantada, já tenha consumido tanto dinheiro,
que parar seja quase impossível.
Adiantaria
os mundurucus gritarem sozinhos lá no Tapajós, para serem contemplados no seu
direito constitucional, respaldado também por convenção da Organização
Internacional do Trabalho, de serem ouvidos sobre uma obra que vai afetá-los?
Não. Portanto, eles foram até Belo Monte se fazer ouvir. Mas, como são
indígenas, alguns acreditam que não seriam capazes de tal estratégia política.
É preciso resgatar, mais uma vez, o discurso da manipulação – ou da
infiltração. Já que, para serem indígenas legítimos, os mundurucus teriam de
apenas aceitar toda e qualquer obra – e, se fossem bons selvagens, talvez até
agradecer aos chefes brancos por isso.
Quando
os indígenas levantam a voz, a voz não seria sua. Seria de um outro, a quem
emprestam o corpo. Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o discurso dos
indígenas como massa de manobra seja inocente. Ele serve a muitos interesses,
inclusive o de tirar do foco os reais interesses sobre as terras indígenas de
quem o difunde. Mas esse discurso não teria ressonância se não tivesse a adesão
de uma parte significativa da população brasileira. E esta adesão se dá, me
parece, por essa espécie de xenofobia invertida. Estes “estrangeiros nativos”
ameaçariam um suposto progresso, já que seu conhecimento não é decodificado
como um valor, mas como um “atraso”, sua enorme diversidade cultural e de
visões de mundo não são interpretadas como riqueza e possibilidades, mas como
inutilidades. Neste sentido, há uma frase bastante reveladora de como esse
olhar – ou não olhar – contamina amplas parcelas da sociedade, inclusive no
governo. Ao falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em dezembro
passado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que sua pasta
atendia “da toga à tanga”. Entre os dois extremos, podemos ver em qual deles o
ministro situa o ápice da civilização e também o seu oposto.
Há
ainda uma dupla invocação do estrangeiro nesse discurso, já que a única coisa
pior do que ser “massa de manobra” de ONGs nacionais seria ser das
estrangeiras. Evocar a ameaça externa parece sempre funcionar, como naqueles
SPAMs, que volta e meia reaparecem, de que “os gringos estão invadindo a
Amazônia” – esta também, tão nossa que podemos destruí-la, tarefa a que temos
nos dedicado com afinco. Ao denunciar uma suposta apropriação do corpo
simbólico dos indígenas por outros, o que se revela, de fato, é a frustração
porque esse corpo não se deixa expropriar e manipular pelas elites como antes.
Porque apesar de todas as violências, há uma voz que ainda escapa – e que
demanda o reconhecimento de seu corpo-terra, de seu pertencimento. Aquele que é
visto como o de fora se torna um incômodo quando diz que é parte.
Vale a
pena prestar atenção em quem amplifica o discurso dos indígenas como “massa de
manobra”, para verificar que fazem exatamente o que acusam outros de fazer:
afirmam o que os indígenas, todos eles, precisam e querem. Parece haver um
consenso, inclusive, de que o verdadeiro desejo dos indígenas seria se tornar
um trabalhador assalariado e urbano ou, pelo menos, o beneficiário de algum
programa de transferência de renda do governo.
Nesta
posição, eles não atrapalhariam ninguém – e menos ainda os produtores rurais.
Este é o momento chave para a entrada de outro discurso recorrente: o de que os
indígenas querem terra “demais”. Basta fazer as contas, como fez o jornalista
Fabiano Maisonnave, na Folha de S. Paulo: com uma
população de 28 mil indígenas em Mato Grosso do Sul, os terenas têm sete
reservas, somando cerca de 20 mil hectares; já o produtor rural Ricardo Bacha,
em cuja fazenda foi morto o terena Oziel Gabriel, tem cerca de 6.300 hectares,
dos quais 800 em litígio. Se é de concentração de terra na mão de poucos que se
pretende falar, há muitos números ilustrativos que podem ser citados. Outro
dado interessante vem de uma pesquisa da Embrapa, citada em artigo do
engenheiro florestal Paulo Barreto, no site O Eco: há 58,6 milhões de
hectares de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a 53% da área total
de terras indígenas. “A Embrapa tem demonstrado que já existem as tecnologias
para aumentar a produtividade dos pastos degradados. Assim, ocupar terra
indígena é, além de inconstitucional, prova de incompetência”, afirma Barreto.
A Embrapa é um dos novos atores que deverão ser chamados para opinar sobre as
demarcações, numa manobra para esvaziar a Funai e agradar a bancada ruralista.
O
lugar de estranho indesejado,supostamente sem espaço no Brasil que busca o
desenvolvimento, tem permitido todo o tipo de atrocidades contra indivíduos e
também contra etnias inteiras ao longo da história. Seria muito importante que
cada brasileiro reservasse meia hora ou menos do seu dia para ler pelo menos as
primeiras 16 páginas do resumo do Relatório
Figueiredo, um documento histórico que se acreditava perdido e que foi
descoberto no final de 2012 por Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura
Nunca Mais, de São Paulo. No total, o procurador Jáder Figueiredo Correia
dedicou 7 mil páginas para contar o que sua equipe viu e ouviu. A íntegra também está
disponível na internet.
O
relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos indígenas
pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Entre os crimes, cujos
responsáveis foram nominados, mas jamais punidos, estão os “castigos”
infligidos pelos funcionários aos indígenas, como crucificações e uma tortura
conhecida como “tronco”, na qual a vítima tinha o tornozelo triturado. Crianças
eram vendidas para abusadores, mulheres, estupradas e prostituídas. Duas
aldeias de pataxós, na Bahia, foram dizimadas para atender aos interesses de
políticos de expressão nacional da época.Uma nação indígena inteira foi extinta
por fazendeiros, no Maranhão, sem que os funcionários sequer tentassem
protegê-la. O procurador cita a possível inoculação do vírus da varíola em uma
etnia de Itabuna, na Bahia, para que as terras fossem liberadas para “figurões
do governo”, assim como o extermínio de um grupo de cintas-largas, em Mato
Grosso, de várias formas: atirando dinamite de um avião e adicionando
estricnina ao açúcar, além de caçá-los e matá-los com metralhadoras. O massacre
ocorreu em 1963, ainda no período democrático, portanto, e os que ainda assim
sobreviveram foram rasgados com o facão, “do púbis a cabeça”.
A
lista é longa. É importante ressaltar que tudo isso não se passou na época de
Pedro Álvares Cabral, nem mesmo no tempo dos bandeirantes, mas na década de 60
do século XX. Praticamente ontem, do ponto de vista histórico. Cabe enfatizar
ainda que os crimes foram infligidos aos indígenas, num comportamento
disseminado por todo o país, por representantes do Estado brasileiro. Menciono
o relatório não só porque acredito que precisamos conhecê-lo, mas porque ele
demonstra que tipo de olhar permite que atrocidades dessa ordem tenham se
tornado uma política não oficial, mas exercida como se fosse – e não por um
único psicopata, mas por dezenas de funcionários e suas esposas, com o apoio e
às vezes a ordem da direção do órgão criado para proteger os povos
tradicionais. Para estas pessoas, o corpo dos indígenas era território a ser
violado, como violada foi a sua terra. Como aqueles sem lugar, os indígenas não
eram reconhecidos como iguais, nem mesmo como humanos. Eram o que, então? O
procurador responde: “Tudo como se o índio fosse um irracional, classificado
muito abaixo dos animais de trabalho, aos quais se presta, no interesse da
produção, certa assistência e farta alimentação”.
Para
quem imagina que este capítulo é parte do passado, vale a pena lembrar que
apenas nos últimos dez anos, nos governos Lula-Dilma, foram assassinados 560
indígenas. A Constituição precisa ser cumprida, as demarcações devem ser
feitas, os fazendeiros que possuem títulos legais, distribuídos pelo governo no
passado, têm direito a ser indenizados pelo Estado. Mas há um movimento maior,
mais profundo, que é preciso empreender. Como “estrangeiro nativo”, uma
impossibilidade, só é possível perpetuar a violência. É necessário fazer o
gesto, também em nível individual, de reconhecer o indígena como parte, não
como fora. Para isso é preciso primeiro desejar conhecer, o gesto que precede o
reconhecimento. Só então o Brasil encontrará o Brasil.
Fonte:.http://revistaepoca.globo.com//Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/06/indios-os-estrangeiros-nativos.html
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