quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Comunidades tradicionais defendem o direito à terra


quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013


Comunidades tradicionais defendem o direito à terra

 
Os representantes de comunidades tradicionais que participaram, desde a segunda-feira (25), do seminário “Os Territórios das Comunidades Tradicionais e o Estado Brasileiro”, reafirmaram, de forma unânime, que sua principal luta é a garantia de seus territórios.
“Nós não precisamos de bolsa família, precisamos ter nosso território livre”, afirmaram indígenas, quilombolas, ribeirinhos, fundos de pasto, seringueiros, entre outros, durante o encontro realizado em Luiziânia (GO), que terminou nesta quinta-feira (28).
Durante o evento, os representantes das comunidades tradicionais falaram da consciência sobre a sua participação na produção de alimentos saudáveis para o país, bem como peixes e frutos do mar. Entretanto, relataram que ainda enfrentam dificuldades em ter a garantia de seu território tradicionalmente ocupado e local de produção.
Os participantes do seminário estiveram reunidos, na tarde de quarta-feira (26), com o advogado do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Adelar Cupsinski, para debater e tirar dúvidas sobre o direito ao território que ocupam. Segundo o advogado, o Estado brasileiro sempre restringiu os direitos dos povos e comunidades tradicionais, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988. Há na Constituição, entretanto, diversos artigos que garantiriam os direitos dessas comunidades. Os artigos 231 e 232 da Carta Magna, por exemplo, reconhecem o direito dos povos indígenas de manterem sua própria organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. E, dentro desse contexto, garantem o direito ao território tradicional.
Segundo Cupsinski, para uma comunidade tradicional a ocupação do território vai muito além da terra como modo de produção. Há vários elementos que permeiam a cultura desses povos e os relacionam, de formas diferentes, ao território que ocupam. Além de poderem viver com liberdade, devem ser garantidas a eles dignidade e identidade. “Dignidade é tudo aquilo que não tem preço: não se vende e nem se compra”, completou o advogado.
Participaram do encontro indígenas, quilombolas, ribeirinhos, fundos de
pasto, seringueiros, entre outros - Foto: CPT
O advogado lembrou ainda que a Constituição Federal também assegura o direito dos camponeses e camponesas à terra, e a própria realização da reforma agrária. Os artigos 184 e 186, respectivamente, que garantem a desapropriação para reforma agrária das terras que não cumprem sua função social, são um exemplo disso.
No entanto, o advogado ressaltou que as normas constitucionais não bastam se o governo não atuar para que essas leis e emendas sejam respeitadas. No encerramento do seminários, os representantes das comunidades tradicionais divulgaram o documento final do encontro. Confira abaixo:

Carta dos Povos e Comunidades Tradicionais
O mundo está doente; precisa de cura” (Ninawa, Hunikui, Acre)
No âmbito dos eventos da V Semana Social Brasileira e do Encontro Unitário dos Povos do Campo, das Águas e da Floresta, nós, povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, seringueiros, vazanteiros, quebradeiras de coco, litorâneos e ribeirinhos, comunidades de fundo e fecho de pasto e posseiros de todo o Brasil, mulheres e homens de luta, nos encontramos em Luziânia GO, nos dias de 25 a 28 de fevereiro, para partilhar cruzes e esperanças e repensar as nossas lutas frente ao avanço cada vez mais acelerado e violento do capital e do Estado sobre os nossos direitos.
Vivemos o encontro como um momento histórico, que confirma a realidade indiscutível de uma articulação e aliança entre povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e camponeses. O diálogo entre povos e comunidades que expressam culturas e tradições diferentes, frequentemente marcadas por preconceitos e rejeição, volta-se para a defesa e reconquista dos nossos territórios. Este é o processo que unifica sonhos e estratégias na construção de um País diferente que se opõe à doença capitalista do agro e hidronegócio, mineração, hidroelétricas, incentivada e financiada pelo Estado, em nome do chamado desenvolvimento e crescimento do Brasil.
Não nos deixaremos curvar pelo avanço insaciável do capitalismo com o seu cortejo de políticas governamentais nefastas e genocidas. Território não se negocia não se vende não se troca. É o espaço sagrado onde fazemos crescer a vida, nossa cultura e jeito de viver, nos organizar, ser livres e felizes. “Territórios livres, já!!!”.
A senzala não acabou. Ficamos livres das correntes e dos grilhões, mas continuamos presos ao cativeiro do sistema”. (Rosemeire, Quilombo dos Rios dos Macacos, Bahia)
Constatamos, mais uma vez, com dor e angústia, o retrocesso armado pelos três poderes do Estado para desconstruir, com leis, portarias, como a 303, PEC 215, ADIN 3239, e decretos de exceção, a Constituição, que garante, em tese, os nossos direitos territoriais e culturais. É revoltoso e doído o que estamos passando nas nossas aldeias, quilombos e comunidades: nossos territórios invadidos, a natureza sendo destruída, nossa diversidade cultural desrespeitada e a sujeição política via migalhas compensatórias. Querem nos encurralar! Sofremos humilhações, violências, morte e assassinatos, o que nos leva a tomar uma atitude.
O primeiro passo para uma verdadeira libertação do cativeiro a que estamos submetidos, é continuar o diálogo intercultural, para conhecermos melhor nossas diversidades, riquezas e lutas. Segundo passo é encontrarmos estratégias de unificação de nossas pautas para a construção de uma frente unificada, que possa se contrapor, com eficácia, ao capital e ao Estado, a partir de mobilizações regionais dos povos indígenas e das populações do campo, das águas e da floresta.
Estamos de olho nas ações dos três poderes do Estado brasileiro, para nos defendermos do arbítrio da desconstrução dos direitos e da violência institucional e privada.
Diante da total paralisia do Governo Dilma em cumprir a Constituição e na contramão da legislação internacional (OIT 169) que decretam o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais, exigimos a imediata demarcação e titulação dos nossos territórios.
Acreditamos que a nossa luta, na construção de projetos de Bem Viver, é sagrada, abençoada e acompanhada pelo único Deus dos muitos nomes e pela presença animadora dos nossos mártires e encantados. (com informações da Comissão Pastoral da Terra - CPT)
 
FONTES: BRASILD
 
Fonte:

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Uma entrevista pela graça da Profª Graúna

Entre verso-e-prosa com Ademario Ribeiro



Imagem disponivel no blog de Ademario Ribeiro

Você já foi à Bahia? Não? Então vá. É só pegar a estrada que vai para Simões Filho, onde vive Ademario Souza Ribeiro, um filho do povo Payaya. Sua aldeia: Canabrava (atual Miguel Calmon), no Estado da Bahia.  Em seu blog Pensamentações, ele mesmo – Ademario - se apresenta:

Sertanejo das Terras dos Payayá, filho de Amélia Souza Ribeiro e de Alberto Severiano Ribeiro (in memoriam)... Escritor (poeta e teatrólogo), diretor teatral, educador ambiental, pesquisador dos povos indígenas e pedagogo. Membro, conselheiro e fundador de diversos coletivos entre estes: ONG ARUANÃ, Associação Muzanzu do Quilombo Pitanga de Palmares e Fundação Crê. Tem publicações diversas em jornais e sites.

Imagem disponivel no blog de Ademario Ribeiro

Em 2010, Ademario completou 52 anos, dos quais 44 anos correspondem ao tempo vivido na cidade. Estudioso da história e da cultura dos povos originários no Brasil, Ademario não esconde sua paixão pela língua Tupi; empregando-a nos poemas de sua autoria, nas peças teatrais que compõe e nas práticas pedagógicas com as crianças da periferia. Diante dessa realidade, cabe até perguntar: é certo dizer que uma língua é morta quando no dia a dia, essa língua ajudando-nos a suportar as dores do mundo? Conversando a respeito de vários assuntos, expomos também as nossas dúvidas em torno da tal Lei 11645/08 e outras questões pertinentes à literatura indígena e ao nosso lugar no mundo. Nesse ritmo, fiz algumas perguntas e ele, generosamente, arrecadou um pedaço do seu precioso tempo para responder o seguinte:  

Graça Graúna (GG) – As línguas indígenas podem explicar por que o Português falado no Brasil se diferenciou bastante do falar lusitano. Como você vê a questão?
Ademario Ribeiro (AR) - Sim. Fantasticamente sim! As línguas indígenas contribuem até hoje no enriquecimento da língua portuguesa. As primeiras pesquisas dão conta de que a língua Tupi contribuiu com mais de 10 mil palavras à língua que Camões e Fernando Pessoa falavam. Contudo, há pesquisadores que apontam que mais de 20 mil foram vernaculizadas. Para onde se fosse ou aonde se quisesse chegar, o que se procurasse ou se perdesse, o que comer ou que beber, as distâncias e o lugar de mata, de água boa, o clima, os ciclos da natureza, os gêneros, os acidentes geográficos, etc. Vinha tudo na ponta da língua Tupi.
Toda a nobreza das línguas indígenas e, em particular, o predomínio do Tupi – foram decisivos para transformar o falar lusitano em uma Língua Pindorâmica, mais tarde, poetizada como “Língua Brasileira”.


GG - Considerando o tempo de formação profissional enquanto Diretor Teatral ou como Educador Socioambiental (há 24 anos) e mais 35 anos atuando como Escritor, até que ponto você acha que a sua identidade (étnica) é indispensável à produção do conhecimento?
AR - Minhas reminiscências ameríndias abrem minhas percepções para ver e estar COM as pessoas e COM os entes da Teia da Vida. Através desta dimensão me conecto com o Todo e se dá meu processo de produção de conhecimento. Utilizando-me dos cinco sentidos, vou me acoplando aos rios, ao ar, aos cheiros, às visões, às reminiscências: me reciclando, me curando, me reconectando com O Grande Espírito.

GG -  O que você pensa da cultura indígena?
AR - Ela é a ontogenia da humanidade. Princípio e geratriz das culturas humanas. Ela guarda a essência, o segredo das terras, águas e céus. O ventre da fertilidade, o sopro do Grande Espírito que animam as nossas caminhadas, saberes e intervenções, nossas relações com o circular, com os ciclos, com os ancestrais, com as fêmeas, anciões e com as crianças, jovens e guerreiros. A cultura indígena como um Todo é a presença dialógica entre signos, símbolos e significados da nossa aventura na Mãe Terra.

GG -  E a respeito de história indígena?
AR - Muito que ser escrita, reescrita, assentada, reassentada, num processo de afirmação do ethos de cada povo/etnia. A cultura e história precisam continuar a circular, fazer seus corrupios. Na cosmologia tupi somos o som (tu) que se pôs de pé (pi). O som que veio do Pai, o som do Criador por onde tudo passou a ter forma. Na história dos povos, a força da palavra esteve muito presente na mulher e através dela inscreveu seu matriarcado. A mãe tece seus fios e sua palavra se conecta com o Todo quando a enuncia. Os pajés têm a palavra que cura e que acalma ou que elucida as nuvens do amanhã. Os anciãos têm a palavra que nos ensina porque em suas caminhadas já se tornaram conhecedores das curvas e nos acalmam quando afoitos ou que nos alertam quando dormimos no ponto. Precisamos acordar e tomar tendência, posição para que tiremos dos subterrâneos as vozes veladas, expatriadas de Pindorama, de Abya Yala, banidas e amesquinhadas pelo eurocentrismo que engendrou as tantas faces dos preconceitos e discriminações e das tragédias que muito abateram os povos indígenas ou que afugentaram e expurgaram para bem distante daquela que chama para si a denominação de “civilização branca” que sob a argamassa dessa ignomínia - esse eurocentrismo fundamentou seus domínios. Muitas águas ainda vão rolar para nos livrar das marcas tão presentes nas almas e comportamentos explícitos e implícitos em nossa sociedade hodierna que mal se disfarçam ou que nos difamam. Nossa história agora não é outra, mas agora quem escreverá não serão os nossos algozes, nossos estigmatizadores – não serão os lobos disfarçados, não serão os “homens bons” ou seus filhos abastados que alisaram os bancos da ciência: nós sim, aqueles que se levantam junto COM seus ancestrais e COM os novos saberes tecidos com a força da nossa cultura e história.

GG- Como você vê a relação entre literatura e direitos humanos?
AR - Primeiro porque literatura é palavra. Tudo se revela quando a palavra soa, chega, voa, põe, impõe ou se esquadrinha no papel: pa (som) lavra: som da cultura humana. A literatura tem a capacidade, a sensibilidade, essa transversalidade e transdisciplinaridade de nos envolver. De estabelecer relações, de anunciar o devir. Cria estratégias e contextos para os valores de uma sociedade pacífica, humanitária se comuniquem com a alma e com o cotidiano das pessoas. A literatura lida com a escrita e a escrita é palavra, signos e assim vão se revelamos os direitos humanos, numa conquista da humanística até que a alteridade seja uma cultura dialogada COM o OUTRO e COM o BEM comum para TODOS.
 
GG - O que você acha dos recursos que as escolas não-indígenas utilizam na abordagem dos saberes indígenas? 
AR - A educação brasileira estereotipou as culturas indígenas e daí, preconceitos e discriminações fundamentaram a práxis pedagógica. Reporto-me sobre um aspecto disto no poema “As coisas como elas são”, de minha autoria:

Se aprende na escola
Que casa de índio é OCA
(isso se for para os Tupi)
e é que também cola
se for para os Wayãpy.

Aonde Yanomami se toca
É XAPONO e a gente a insistir
Chama de MALOCA
Mas para os Xavante é RI
Para os Pataxó é PÃHÃI
É SETHE para os Fulniô
Para os Karajá é HETÔ
Para os Munduruku é uka’a...

E para os Yawalapiti?
E para os Txukahamãe?
E para os Kiriri?
E para os Krahô?
E para os Maxakali?
E para os Xakriabá?
E para os Kaaeté?
E para os Tuxá?
E para os Kantaruré?...
É bom não se confundir
Não é um FEBEAPÁ
E não se fica em pé
Quando seguro não está!!!
GG – A exemplo do espírito crítico que habita em seus poemas, que recursos você aplica na abordagem dos saberes ancestrais?
AR - A metodologia/abordagem se movimenta no levantamento dos conhecimentos prévios dos alunos acerca do conhecimento sobre os Povos Indígenas no Brasil. As intervenções acontecem num enfoque interdisciplinar: (enfaticamente, história, geografia, língua portuguesa, por exemplo), transdiciplinar: (teatro, poesia, artesanato, música, dança, etc.) com aulas interativas, apresentação de slides, audiovisuais, elaboração de álbuns seriados, elaboração de glossário ilustrado, material expositivo, cartazes, discussão sobre matérias do Jornal Porantim, leituras de textos sobre mitos e lendas, produção de textos, realização de oficina de cerâmica/artesanato, peteca e da língua tupi (da qual sairão o glossário, o canto  ritual) e a performance/dramatização, culminando com exposição e artesanal e apresentação poético-musical e teatral, como resultados práticos e atividade avaliativa.

GG - Como você se considera em relação a sua aldeia?
AR - Sou destribalizado. Vivo como proscrito, um Uirás, mas, cúmplices dos meus parentes em seus projetos, ações, compartilhamentos, denúncias, documentos e, ora, a convite do cacique Juvenal Teodoro Payayá e me comprometi a realizarmos o “Projeto do Povo Payayá.” E, a convite de Edgar Otacílio de Oliveira, mestre em Educação, vou contribuir com os índios Kaimbé, um curso de Tupi. O tupinólogo Joubert de Mauro também me deu a sua palavra no sentido compartilhar conosco. Assim tem sido a minha inscrição: junto a você Graça Graúna, à Eliane Potiguara...

GG – Sentir-se “destribalizado” é uma sensação horrível, mas quero lembrar algo que eu já te falei em outras ocasiões.  Acredito que
é possível dizer – dentro da percepção indígena que o(a) indígena não deixa de ser ele/ela mesmo(a) em contato com o outro (o não-índio), ainda que o(a) indígena more numa cidade grande, use relógio e jeans, ou se comunique por um celular;  ainda que uma parabólica pareça ao outro um objeto estranho ou incompatível com a comunidade indígena.  Mesmo assim, a indianidade  permanece,  porque o(a) índio(a), onde quer que vá, leva dentro de si a aldeia. Esse modo de perceber o meu lugar no mundo me leva a  refletir mais acerca de algumas questões ainda não resolvidas; uma delas é a Lei 11645/08. Por exemplo: você acredita que material didático utilizado na escola não-indígena é coerente com a realidade dos povos indígenas?
AR - Tua percepção é uma via sem volta. Ela nos direciona. Você, GG, querida kybyra (irmão(a) nos alimenta com esta luz. Quanto aos materiais didáticos, via de regra, não. Eles ainda não dão conta da sociodiversidade, alteridade, identidade, cultura, história, cosmologia, etc. dos povos indígenas. Contudo sabemos de exceções. Dessas, algumas práticas mais pontuais vão por conta de pessoas iguais a você Graça Graúna, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Juvenal Payaya, Heitor Karai Awá-Ruvixá, entre outras. Depois as pontuais mas que são, obviamente, estimuladoras também e cumprem um papel de emancipação e cidadania. Sobretudo, realizei o Projeto de Intervenção “História e Cultura dos Povos Indígenas: passado presente pra valer”, no Centro Educacional Santo Antônio – CESA, em virtude da 3ª etapa do Estágio Supervisionado, ministrado pela Profª Sandra Augusta de Melo, no curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e a Faculdade Intercultural da UNEMAT que está realizando esforços e têm instrumentalizado, encorajado e graduado muitos professores indígenas e possibilitando que a sociedade não-indígena passe a reconhecer os povos indígenas e seus direitos.

 GG - Em que ocasiões e de que modo você faz uso da Lei 11.645/08?
AR - Nas minhas ações nos mais diversos coletivos, tais como os Territórios de Identidade, Lista de Literatura Indígena, moderada pela escritora e professora Eliane Potiguara; como estudante no Grupo de Pesquisa, liderado por você Graça Graúna que é educadora em literatura, na UPE; nas conferências, palestras e exposições em escolas, associações, ONGs, universidades; nas abordagens artístico-culturais, através da teatrologia, poesia; no compartilhamento de materiais e nos intercâmbios com profissionais de educação, lideranças indígenas, negras e quilombolas.  Também, apresentei em Salvador, dia 24, nesse mês, no 2º Seminário: “O Desafio de Educar Trocando Saberes, Renovando Esperanças”, com o CESA: “História e Cultura do Povos Indígenas: Abordagem transversal fortalecida pela Lei 11.645/08”. Sobretudo, tenho tentado articular temas/conteúdos de história, ciências/meio ambiente, língua tupi, direitos humanos, música, arte, literatura e teatro, para sensibilizar e mobilizar pessoas e coletivos ao resgate e valorização dos povos indígenas no Brasil.

GG - Até que ponto a Lei 11.645/08 contribui para que os povos indígenas sejam reconhecidos como os primeiros habitantes do Brasil?
AR - A lei é só um amparo legal. Sozinha ela não se mexe do papel e nem tampouco sai dele para trazer à luz cotidiana e nem à consciência o que está velado nos subterrâneos dos conceitos e preconceitos produzidos pelo eurocentrismo e reparar, devolver, resgatar e reescrever a história e cultura desses povos. Precisamos movimentar forças: governos, instituições de ensino e sociedade civil para que esta lei não fique apenas no papel. Se conseguirmos fazer isso – a 11.645/08, cumprirá em pari passu com as nossas práticas e utopias, a sua função nesse processo já iniciado pelos movimentos indígenas e negros ao longo dos anos. Dessa forma ela poderá contribuir no ensino-aprendizagem quando possamos compartilhar saberes, práticas e valores concernentes aos povos indígenas; na perspectiva da diminuição dos preconceitos e indiferenças que tanto têm violado e violentado seus direitos e vidas. Penso que essa lei torna o invisibilizado mais visível. Por vir à tona não será desconhecido. Por ser contextualizado em suas culturas não serão genéricos: suas faces plurais mostrarão sua sociodiversidade ameríndia, nativa, etc. A dialogia abrirá canais de exposição, debates que apresentarão essa diversidade fazendo com que as percepções se expandam formando um círculo em que as extremidades se encontrem para o reconhecimento das semelhanças e diferenças e que diminuamos as indiferenças.

GG – A nossa conversa em torno da lei 11645/08 é só uma ponta do iceberg. Vamos torcer, então, para que nas escolas a nossa história, a nossa memória, a nossa origem sejam respeitadas de maneira que o outro nos permita ser e estar no mundo. Para agradecer a sua atenção, o seu carinho e a sua sabedoria, tomo a liberdade de apresentar, aqui, o poema intitulado “Aguata py’ýi  ou Acelerar os passos”. Este poema escrevi em homenagem aos parentes e às  parentes indígenas e em homenagem  também a sua poesia que me encanta. Que Ñanderu nos acolha!
Aguata py’ýi 
                                por  Graça Graúna

...e se mil línguas eu falasse
levaria teu sonho entre as estrelas
e lá no centro da terra
eu diria: salve,  Abya Yala, salve!


Assim deve ser, assim será
a cada brilho da noite
a cada chama do dia
bem digo a Ñanderu eté
Nosso Pai verdadeiro:
recebe meu Pai, a alquimia da palavra
dos filhos, das filhas da terra
recebe nossa alegria e os nossos sonhos
acolhe também nossos desencantos
porque somos tua herança

invisíveis, ressurgidos
mas não somos um, nem cem, nem mil
somos infinitamente filhos da resistência
somos parte do teu ser
Potiguara, Guarani,
Tukano, Xavante,
Sateré, Nambikuara,
Pataxó, Truká,
Terena, Munduruku,
Payaya, Fulni-ô

Pankararu, Pankará,
Xukuru, Tupi,
Yanomami....yanomami....
todos os povos
todas as nações
somos todos
do abaeté da lagoa do Senhor do Bomfim
das ladeiras de Olinda do canavial
da serra do vento da serra do mar
de Norte a Sul
de Leste a Oeste
do Oiapoque ao Chui
somos teus somos nossos
e como diria Ademario
vamos todos assim
- Aguata py’ýi!
- Aguata py’ýi!
- Aguata py’ýi!
 
Nota:
Abya Yala = na língua do povo Kuna (Colômbia), quer dizer Terra madura, Terra viva, em florescimento.
Ñanderu eté = em guarani, quer dizer: Deus Pai verdadeiro
Aguata py’ýi! = em tupi, quer dizer: acelerar os passos
 
Autoria: Graça Graúna, Nordeste do Brasil, abril indígena 2009. O poema Aguata py’ýi  ou Acelerar os passos  foi publicado pela vez primeira no site Overmundo, em 18 abril de 2009.
 

domingo, 24 de fevereiro de 2013

D. Taci & Thiní-á na crônica do TAQUI PRA TI


 Fiz um comentário no site TAQUI PRA TI, cujas crônicas são escritas pelo Prof. Dr. José Ribamar Bessa Freire -, sempre com elas me comovo, me alegra, vibro, vivo de rir (para não dizer: morro de rir). Às vezes confesso que não sou muito de ler, contudo, as crônicas do Bessa - são maravilhosas à bessa! A crônica abaixo apresenta mais uma vez o seu gênio e seu esmerado cuidado com a memória brasileira, enfaticamente, vinda dos povos indígenas - dos quais tem profundo e admirável conhecimento, estudos e pesquisas e esforços por sua visibilidade e reconhecimento.
 
                                                                   Salve, mestre Bessa!
 
Vamos a crônica:

DONA TACI: A SABEDORIA FULNIÔ
José Ribamar Bessa Freire
24/02/2013 - Diário do Amazonas

 
Em português, casa é casa e ponto final, cada um que se vire para colocar dentro dela o que bem entender. Na lingua Yaathé, ela já vem "mobiliada": casa é cetutxiá, que significa lugar de sorrir, lugar de paz, de harmonia. Foi numa cetutxiá, no município de Águas Belas, em Pernambuco, onde viveu 82 anos e onde criou seus treze filhos, que dona Taci, uma pajé Fulni-ô, adormeceu sábado passado, sorrindo. Não despertou mais. Deixou uma coleção de histórias deliciosas que seu filho me contou, algumas das quais compartilho, agora, depois de apresentar Thini-á ao distinto público.
Filho caçula de dona Taci, Thini-á Pereira da Cunha, 42 anos, é um velho amigo que há alguns anos saiu de sua aldeia, entre a Serra Comunaty e a Serra Preta, estudou cinema na USP e depois veio morar num sítio em Muriqui (RJ). Aqui de vez em quando nos encontramos, no projeto 'Vivências Indígenas', que ele criou e que lhe permite percorrer escolas e centros culturais, onde narra histórias, discorre sobre filosofia indígena, fala da resistência Fulni-ô e do ritual do ouricuri, dança, canta, mostra o artesanato, além de ensinar algumas noções básicas da língua Yaathé.
Mistura de ator, animador cultural e agitador, ele circula nos meios artísticos, mas nunca deixou de visitar sua aldeia em Pernambuco. Lá, conversava com a mãe e se reabastecia com novas histórias e novos saberes transmitidos em Yaathé, a única língua indígena no Nordeste que se mantém viva e funcional, estudada pela linguista Januacele da Costa, da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), coordenadora de um projeto do qual fazem parte pesquisadores e doutorandos, entre os quais Fábia Pereira, que é Fulni-ô.
- Os Fulni-ô são bilingues, pelo menos 90% deles falam fluentemente as duas línguas - Português e Yaathé - ambas usadas na escola da aldeia. O ensino de Yaathé não se limita a palavras soltas; aqui a língua materna tem o mesmo status do português - esclarece Januacele.
Segundo os registros da Funasa divulgados pelo Instituto Sociambiental (ISA), a população Fulni-ô, em 2010, era de 4.336 pessoas, mas se calcula que hoje já ultrapassa seis mil. Uma delas era dona Itaci, mais conhecida por Taci, que aprendeu a ler na época do MOBRAL, porém jamais falava português dentro de casa. Justificava:
- A língua é sagrada, como o ouricuri, porque guarda o pensamento de um povo. Se eu falar em português, por exemplo, a palavra casa, você só vai lembrar do prédio, das paredes, mas se eu falo cetutxiá, aí você sabe que é, sobretudo, um lugar onde a gente encontra alegria e serenidade. 
De onde vim
Foi nesse lugar de paz que se deu a educação de Thini-á. Aos nove anos, perguntou à mãe:
- Como é que eu fui feito?
Taci não contou historinhas. Olhou fundo nos olhos do filho e lhe disse:
- Hoje à noite, vou te mostrar. Você, que já ajuda na roça, tem idade pra saber.
De noite, chamou o filho, sentou-o num banquinho de madeira ao lado da cama. Deitou com o marido Manuel e os dois começaram a trocar carícias. Fizeram amor diante dele. Thini-á, muito tempo depois, ainda vive com intensa emoção aquele momento:
- Eu nunca tinha visto aquilo, nem podia imaginar. Fiquei muito feliz de saber que eu era fruto de um ato amoroso como aquele, bonito, vivido com tanta delicadeza, com tanta poesia, com tanta naturalidade. Aliás, minha mãe nunca falava em "fazer amor", mas em "viver o amor".
O pai Manuel completou, então, o processo de formação. Com uma das mãos ainda molhada de esperma, ele segurou na outra uma semente de feijão-guandu, conhecido como "ervilha de pombo". Exibiu as duas mãos e perguntou ao filho:
- Qual é a diferença?
- São sementes.
- O que precisa pra plantar?
- Escolher a semente, revirar a terra, fazer uma cova e enterrar.
- E depois?
- Adubar.
- O que mais?
- Tratar a plantinha e acompanhar o crescimento.
- E depois?
- Já disse tudo.
- Não! É preciso ainda amar e cuidar dela. Me diga, então: terra é macho ou é fêmea?
- É fêmea.
- Tá certo, é fêmea. A terra tem tudo que a mulher tem. É fértil, é bonita, é generosa. Se receber a semente e for amada, agradece e dá frutos. A terra é tão sagrada como a mulher. Nunca faça seu sagrado sofrer, trate as duas com amor, dê prazer a elas.
Thini-á soube, então, porque em sua sabedoria a língua Yaathé chama 'mãe' de ytõketãne que significa o começo do meu olhar o mundo e 'pai' de ytofketá, ou seja, o começo dos meus passos.
Para onde vou
Um dia, no final de agosto, nos preparativos para o ritual do ouricuri, Thini-á, ainda criança, chorou com a pintura que a mãe fez no corpo dele.
- Mãe,o desenho não está bonito, não está perfeito, está torto!
Ela parou de pintar e apontou:
- Meu fio, olhe aquela planta ali. O que há de imperfeito nela?
Thini-á olhou, olhou, e disse que não havia visto nada de errado. Ela insistiu para que ele observasse com muita atenção para ver se havia feiura. Ele disse que só via beleza.
- E aquele galho torto, ali, na parte de baixo?
- É mesmo! É torto!
- A beleza, meu fio, está naquele galho torto se juntando ao galho reto e que assim formam uma harmonia...você já imaginou se as plantas fossem todas retinhas, certinhas, do mesmo tamanho?
De passagem por Brasília, dona Taci indicou a fonte de sua sabedoria. Convidada para um evento na UnB, participou de uma mesa com filósofos, historiadores, antropólogos. Na apresentação de um deles, foi dito que havia feito seu doutorado em Paris e se formado na Sorbonne. Ela ouviu tudo caladinha. Quando chegou a sua vez de falar disse:
- A minha Sorbonne é a mata. É ali que aprendo tudo, até "fosolofia".
Sua passagem por Brasília, em abril de 1990, durante o governo Collor, foi para reivindicar do presidente da Funai, coronel Airton Alcântara, recursos para um projeto comunitário.
- Coronel, nunca ocupei a Funai. Agora, vim aqui porque precisamos de recursos para criar ovelhas. Vou logo avisando: meu nome é "quero-porque-quero". Não aceito um "não".
O coronel, que gostou do jeitão dela, disse brincando:
- E o meu nome é "Não dou-porque-não-quero".
- Mas você é meu funcionário. A Funai só existe porque existe índio, se a gente não existisse, não tinha Funai.
- Tá bom! O que é mesmo que a senhora quer?
- Quero uma coisa pequena, uma maquininha de fazer dinheiro pra poder criar ovelhas.
-  Ninguém aqui fabrica dinheiro não, todo mundo vive de salário.
- Então eu quero salário.
- Mas dona Taci, pra ter salário precisa trabalhar.
- Mas eu não tou vendo ninguém trabalhar aqui, só gente sentada, conversando, lendo, olhando papel, andando pelo corredor, não tem ninguém plantando na roça, criando animal, tirando palha, fazendo artesanato...
Saiu de lá meio desencantada, com vontade de xingar as pessoas. Perguntou a Thini-á:
- Como é que os brancos se ofendem?
- Eles chamam os outros com nome de animal.
- Mas isso não é xingar...
- É sim, mãe. Eles falam assim: sua vaca, sua galinha, sua piranha, seu burro...
-  Mas por que isso ofende? A vaca tem uns peitões tão bonitos, dá leite, dá carne, dá o couro... A galinha bota ovo, alimenta a gente, faz gracinha pro galo... O burrinho é bonzinho, ajuda a carregar as coisas. Eita povo mais doido, que quando quer ofender, elogia.
A enciclopédia
Ela percorreu as repartições de Brasília - Funai, UnB, Ministério da Agricultura - trajando apenas um vestido de alcinha, sem calcinha, que ela nunca usava. Sentou. O filho advertiu:
- Mãe, fecha a perna, tá tudo aparecendo, tão olhando.
- O que é que tem? As pessoas nunca viram? Que bom, meu fio. Nessa idade, eu pensava que não tinha mais nada pra chamar a atenção. Que bom que ainda tenho alguma coisa que interessa ver.
Voltou para Pernambuco, em companhia do filho, que dias depois anunciou seu retorno ao Rio de Janeiro, onde morava. Ela o aconselhou a buscar uma mulher ali, na aldeia, para plantar nela uma semente, queria mais um neto. Thini-á explicou que não podia ficar, precisava ir, ansiava por novos conhecimentos.
- Ah, então o que você quer não é uma mulher, é uma "ciclopédia", disse ela, encantada com a palavra nova que havia aprendido em Brasília.
Dona Taci foi chamada às pressas por um pequeno comerciante local, de Águas Belas, que queria umas rezas, umas garrafadas para umas dores que estava sentindo. Satisfeito com o resultado final, perguntou:
- Quanto lhe devo?
- Não é nada não.
- Faço questão. Escolha aqui na loja um cobertor.
Dona Taci viu que os cobertores eram todos de qualidade duvidosa, ralos, quase transparentes, daqueles usados por moradores de rua ou pelos caminhões de mudança para proteger os móveis. Sagaz, disse que não se dava bem com cobertor novo, que gostaria de um usado por ele, dono da loja, para ficar com a lembrança do cheiro dele. Ganhou um bom cobertor.
- Meu fio, fiz isso, porque sabia que dono de loja não usa cobertor ralinho.
Óculos Fulni-ô    
De três em três meses, vinha à aldeia um ônibus todo equipado trazendo assistência médica. Os fulni-ô aproveitavam para se consultar. Dona Taci fez um check-up. Implicou com o nome do médico, o doutor Rovésio Pardellas, a quem chamou de doutor Ferroso.
- Por que o senhor tá apertando meu peito? O senhor não tem mulher não?
- É pra saber onde tá doendo.
- Mas quem tem de saber onde está doendo sou eu. Foi pra isso, que estudou tanto?
Dona Taci queria porque queria usar óculos, embora não precisasse, mas achava bonito. Na caravana médica, havia um oftalmologista que dilatou suas pupilas, botou colírio, e voltou no dia seguinte, trazendo uma armação sem lentes. Colocou nela para provar o tamanho.
- Já estou enxergando melhor, estou vendo tudo - disse dona Taci.
Ela, na realidade, para ver o mundo, só precisava mesmo da lente fulni-ô. Uma semana após sua morte, em conversa telefônica com o filho, que foi a Águas Belas para o enterro, lembramos dessas e de outras histórias, algumas impróprias para menores. Essa sábia, que agora nos deixou, desceu o Rio Ipanema, entrou no Velho Chico e desaguou no mar, onde foi se juntar, na grande cetutxiá, ao seu Manuel, falecido em 1985. Que descanse em paz!
P.S. - Relembramos alguma dessas histórias com Mariana Kutassy, vizinha de Thini-á em Muriqui, que me deu a notícia da viagem de dona Taci.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

‘A Dilma não é amiga do índio, ela é inimiga’

‘A Dilma não é amiga do índio, ela é inimiga’, diz líder yanomami

Porta-voz dos yanomami, Davi Kopenawa se diz incansável na luta pelos direitos de seu povo

                 
Davi Kopenawa: "Ela (Dilma) não conhece nossa floresta, a nossa terra, a realidade do povo yanomami. Só conhece o papel, a lei. Mas ela não está enxergando"
Davi Kopenawa: "Ela (Dilma) não conhece nossa floresta, a nossa terra, a realidade do povo yanomami. Só conhece o papel, a lei. Mas ela não está enxergando" (Odair Leal)
 
Quando os yanomami estavam quase perdendo a guerra para os garimpeiros e políticos que lhe apoiavam, no final da década de 80, Davi Kopenawa, 58, foi às Nações Unidas. As tentativas de homologação já se arrastavam há vários anos, sem uma definição do governo brasileiro.
 
Com apoio de lideranças indígenas que despontavam no cenário político do país – como Ailton Krenak e Álvaro Tukano – Davi foi a Nova York, nos Estados Unidos, e deu o seguinte recado: “Aqui é ONU. ONU manda tudo. ONU não é só para olhar Paris, Japão, Londres. Mas para também olhar para a cidade e comunidade pequena. E também para olhar o povo yanomami. A ONU deve conversar com o governo brasileiro para que ele resolva a nossa demarcação e deixar o yanomami ficar tranquilo”.
 
A repercussão da fala de Davi reverberou no auditório das Nações Unidas, na mídia internacional e, claro, veio parar no Brasil e nos bastidores do poder, em Brasília.
 
Porta-voz e mais conhecida liderança do povo yanomami, Davi diz que só viaja muito porque precisa defender seu povo. Ele salienta que sua “casa mesmo” é a aldeia Watoriki, na região do rio Demini, no Estado do Amazonas, divisa com Roraima.
 
Sério quando está à frente de grandes discussões, Davi tem uma faceta divertida e espirituosa que a reportagem observou nos quatro dias em que passou na aldeia Watoriki. Davi também tem pendores para o xamanismo, inspirado nos ensinamentos de seu sogro, Lourival.
 
Na assembleia da Hutukara, Davi andava ocupado. Se dividia com inúmeras e diversificadas tarefas: assembleia, encontros, debates, organização da festa para os visitantes, maestro das danças e até as coordenadas para as refeições. Davi estava em todos os lugares.
 
No intervalo de uma dessas atividades, sentado em um tronco de árvore na entrada da aldeia, Davi conversou com a reportagem de A CRÍTICA, durante o qual falou sobre sua história de luta, a batalha pela demarcação, garimpo e sobre a tentativa do Congresso Nacional de regulamentar a mineração em terra indígena. Davi não poupou ninguém, nem a presidente Dilma Rousseff, considerada por ele como “uma inimiga dos índios”.
 
Leia a entrevista:
Como você entrou na luta em defesa do povo yanomami?
Assumi a responsabilidade para defender meu povo. O não indígena é o Governo Federal. Ele que manda no Brasil. Mas eu não acredito. Manda construir a cidade, a estrada. Eu fico pensando, querendo descobrir, “será que esse homem é como Deus”? Era assim que eu pensava no começo. Eu falava só um pouco português.
 
Como você decidiu enfrentar as dificuldades vividas pelo seu povo?
Eu pensava que o presidente da Funai protegia nós. Aí eu pensei: “Vou enfrentar o homem-golias”. O homem-golias é um homem grande. Um homem que não ama a terra, não ama o povo indígena, não ama a beleza da floresta. Ele quer derrubar tudo. Estão usando as máquinas pesadas, usando muita gente trabalhadora para trabalhar para ele. E ganhando pouco. E usando como escravo. Eu fui descobrindo. Eu fui percebendo essa situação. Percebi a destruição dos rios, desmatamentos. Aqui não chegou, eu que andava, acompanhava com os outros povos indígenas.
 
Nessa época você começou a perceber a luta de outros povos indígenas?
Sim, eu acompanhei a luta dos macuxi, dos wapichana, ingaricó (Roraima) e outros parentes que lutavam em Brasília, como os kaiapó, os xavante. Vi que davam um pedaço pequeno para eles. Eu ficava pensando, “acho que não vai dar certo para o yanomami. O yanomami precisa de uma terra grande”. Assim que enxerguei.
 
Os problemas reais dos yanomami eram os garimpeiros então?
É, comecei a ver a entrada dos garimpeiros na terra yanomami. Vi que o homem branco não tem pensamento, não pensa no futuro, só pensa nele. Eu fui acompanhando assim. Os invasores então começaram a entrar na terra yanomami. Pescadores, caçadores, fazendeiros, garimpeiros, tudo foram diretamente para a terra de Surucucu. Eu fui no garimpo ver o que estavam fazendo. Encontrei cheio de buraco, tirando as areias, as pedras, jogavam fora, e os igarapés parados. E a poluição fica dentro da água. Mercúrio, óleo, gasolina, latas de lixo. A floresta tem vida. A floresta não nasce mais. A visão do povo indígena era assim. Aí descobri tudo. Que o homem branco desfaz a mata, maltrata nosso País.
 
Depois de ver tudo, você também se engajou na luta?
Em 1975 comecei a lutar. E o povo não sabia que eu estava lutando. O não índio fica me olhando. Vendo que estou fazendo, vendo que estou reclamando. “Olha branco, não é assim”, eu dizia. “Não é bom para branco fazer isso, destruir. Se nós, yanomami, deixar invadir tudo vai morrer muito meu povo”, falava. Aí comecei a andar para reclamar em Brasília. Comecei a viajar com outras lideranças: Ailton Krenak, Jorge Terena, Álvaro Tukano. Eles me explicavam: “Olha Davi, os brancos são maus. Maltratam nosso País. Nós vamos lutar. Você e nós”. Eu decidi lutar por causa do meu povo, não por causa de mim.
 
Que tipo de atividades que vocês, lideranças indígenas, realizavam?
A gente falava com autoridades. A Funai não entendia, ficava só prometendo. Dizendo que ia tirar garimpeiro, sempre repetindo como o branco invadiu nosso País. O branco não descobriu. Nós, povos indígenas, já protegemos muitos anos. Chegou 1986. Grandes invasores entraram. O governo José Sarney e o presidente da Funai, Romero Jucá, derramaram o garimpeiro na terra na terra yanomami. Quarenta mil garimpeiros entraram na maloca Papiú. Eu me reforcei. Me encorajei. Vou lutar. Esse é direito meu.  Eu ia para lá, voltava para cá. Difícil deslocamento. Eu não tenho próprio transporte, não tenho recurso. Pagavam para mim.
 
O que você viu quando garimpo chegou na terra yanomami?
Garimpeiro desceu muito. Chegaram 40 mil, levaram avião, helicóptero, bebida, comida. E assim que aconteceu. Começou a adoecer meus parentes. Malária, tuberculose, doenças venéreas. O homem branco é cheio de doença. Sangue dele é contaminado. Os parentes morriam muito na cidade e na comunidade. Eu fiquei firme. Sem baixar a cabeça e acreditando na força da natureza.
 
Como você foi parar nas Nações Unidas?
O Ailton Krenak escreveu uma carta e enviou para os Estados Unidos, na ONU. A ONU recebeu e leu que yanomami estava morrendo. Que precisava de apoio. Em pouco tempo, chegou notícia boa do amigo Ailton. “A ONU recebeu a sua carta. Você está lutando sozinho”, me disse ele. Recebi o Prêmio Global da ONU. Esse prêmio abriu meu espaço, meu caminho. Eu saí do meu País. Fui primeiro para a Europa. Contei que o povo yanomami precisava da ajuda.
 
E como o governo brasileiro reagia?
O governo brasileiro queria esconder, deixar a gente morrer sozinho, sem ninguém saber. Eu que levei, em nome do meu povo, a notícia para outro mundo. Foi assim que me reconheceram, que foi se espalhando nos jornais. Tenho uma amiga, Cláudia Andujar. Pessoa muito corajosa, muito inteligente. Ela me levava para falar com os jornalistas. Foi assim que espalhou o nome do yanomami. Fizeram uma grande campanha no mundo inteiro, fizemos uma carta para o Governo Federal. O governo não queria deixar o índio sair do país, proibia porque tem medo.
 
O que você falou na ONU?
Tive oportunidade de falar tudinho que acontecia com meu povo. Disse que a ONU não era só pra olhar para Paris, Japão, Londres. Mas sim para olhar cidade e comunidade pequena. E olhar o povo yanomami. Pedi para a ONU conversar com o governo brasileiro para resolver a demarcação da terra. Eu queria resposta, não queria promessa. “Você vai resolver, você vai mandar?, eu disse. Eu andei muito, mas foi bom.
 
Na época, o governo brasileiro queria demarcar da terra yanomami em lotes, não era?
Quando foi homologado, o Fernando Collor me chamou em Brasília para entrar no palácio. Quatro yanomami foram lá. Registrou a terra como criança nasce. Esse documento não está comigo, está no governo. Mas não aceitei que fosse em lote. Eles queriam 19 ilhas, tudo pequeno. E o meio? Vai ser a estrada, vai encher de fazendeiro, garimpeiro. Eles queriam maloquinha. Onde íamos caçar, procurar comida, colocar um roçado? Eles queriam que yanomami ficasse em pequeno sítio. Yanomami precisa de caça: anta, queixada, catitu, peixe. Reclamei logo. Eu queria área única, contínua, grande.
E era assim que muita gente queria que fosse a Raposa Serra do Sol também, tudo em ilhas.
A Raposa Serra do Sol aprendeu com nós. Os macuxi aceitavam terra pequena, cheia de fazendeiro e arrozeiro. Mas depois os macuxi pensaram: “vamos lutar como o Davi lutou”. Eu disse que podia dar apoio, lutar com os macuxi. Lutamos até conseguir.
 
O que você acha da proposta de autorizar a mineração na terra indígena? Como vai ser aqui na sua terra?
A entrada da mineração em terra yanomami vai derrubar milhares de árvores grandes e pequenas. Os igarapés vão sujar tudo. Vai fazer buraco, muita gente vai morar, vai gostar do lugar, vai trazer suas famílias, empregados deles. Vai criar uma cidade pequena. Manaus era pequena. Agora cidade é grande. Grandes máquinas para nós representam os bichos, um monstro grande. E muita gente vai entrar, muitos países vêm para cá. Todo mundo quer pegar ouro, diamante e outras pedras preciosas. Os problemas aconteceram, vencemos, mas estão se repetindo. Agora o povo está comemorando. A luta vai continuar.
 
Por que você acha que o governo quer regulamentar a mineração?
Nós não queremos a regulamentação. Para que? O mundo está de olho, empresas.  Ando de Boa Vista para São Paulo e não há uma terra sem estar mexida, derrubada. Por que o governo não faz lá? Onde não tem índio. O governo só quer mexer onde tem índio. Em 2012, os políticos, os governos, o mundo geral, estão lutando. O governo rico, com bastante dinheiro e força, estão tentando mexer a terra yanomami. Eles estão unidos. Apoiam o governo Dilma. A Dilma não é amiga do índio. Ela é inimiga. Ela não conhece a nossa floresta, a nossa terra. Ela não conhece a realidade do povo yanomami, a beleza da floresta. Ela só conhece o papel, a lei. Mas ela não está enxergando. O pensamento dela é só pra destruir o subsolo.
 
E ainda tem o problema do garimpo ilegal.
Eu não estou conseguindo tirar os que já estão aqui. Nem a Funai. A Polícia Federal só se mexe quando índio está derramando sangue, recebendo tiro. Quando índio está vivo, ela não liga. Mas a nossa maior preocupação é com a mineração e com as empresas grandes. Já tem empresa interessada.
 
Davi, vamos falar sobre você um pouco. Onde você nasceu?
Eu nasci na cabeceira do rio Toototobi, a 60 quilômetros daqui dessa aldeia onde moro agora. A minha comunidade veio andando. Vem mudando. Meu povo é nômade. Depois vai descendo. Eu sou assim.  Quando eu era pequeno, eles mudaram. Não voltou mais.
 
Você fundou a aldeia Watoriki?
Aqui estou há 20 anos. Eu juntei eles (os índios), estava sendo criada a estrada de Manaus-Caracaraí. Fiquei aqui, trabalhando, com meu sogro Lourival. Hoje não tenho um lugar certo. Eu moro aqui, é minha casa. Quando criamos a Hutukara, com sede em Boa Vista (RR), ela fica na frente da comunidade. Fico na beira da rio Branco.
 
Perfil:
Nome: Davi Kopenawa.
Idade: 58
Atividade: Liderança do povo indígena yanomami e xamã.
Algumas premiações: Global 500 Award das ONU (1988) e menção honrosa especial do Prêmio Bartolomé de Las Casas outorgada pelo governo espanhol (2008).
 

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Papo entre manos pós-carnaval

 
O Marcelo Manzatti nos enviou a crônica abaixo de autoria do Alceu José Estevam do Urucungos, Puítas e Quijengues (Campinas/SP). Por sua beleza, linguagem e toques -, desejei socializá-la aqui. Leia e tire suas conclusões.
 
A Crônica:
 
Fala aí mano, tudo bem?
 
Firmeza, vou levando e você como passou o Carnaval?
 
Na fé... passei sambando, fazendo um xirê juntos com o Ibaô, o Urucungos e o Maracatucá em Campinas e também com o Solano Trindade lá no Embú das Artes.
 
Legal, então a parada foi firmeza?
 
Podes crer, mano, só andando com os caras, trocando ideias com as minas, ouvindo as tiazinhas contando estórias, tocando tambor e pagando uma de neguinho carnavalesco.
 
E como é que foi esses rolês?
 
Bom, seguinte, primeiro eu foi lá no Ibaô, onde rolou uma parada em homenagem a Yemanjá. Estava todo mundo lá no Balaio das Águas, nome da pegada promovido pelo Ponto de Cultura que fica lá no Nóbrega. Estava legal pra caramba. Teve roda de capoeira, puxada de rede, jongo, maracatú, afoxé e um lance num terreiro que também fica lá no Nóbrega para a entrega do balaio de flores que seriam levados ao mar, no dia seguinte a Yemanjá.
 
Pô, então estava da hora! Quem que a gente conhece que estava lá?
 
Vai vendo, vou listar: o pessoal do Jongo Dito Ribeiro; o Maracatucá; o Uabassá Ilu, Crispim Menino Levado do Marquinhos; inclusive ele fez a tiririca; o Urucungos e o Afoxé Ibaô. Fora uma pá de gente preta e bonita.
 
Pó meu... e as pretas?
 
Cada uma mais linda que as outras.
 
Eu perdi mesmo
 
Perdeu playboy.... mas você é casado. Aí depois foi na outra fita lá no Bloco do Urucungos, no domingo de carnaval. Está sabendo que ele está fazendo 25 anos?
 
Já tem tudo isso?
 
Só.... podes crer! Mas foi muto bacana. Teve a coroação do maracatu com a presença de um monte de parceiros, inclusive com o pessoal do Maracatucá, do Ibaô e vários neguinhos de diferentes grupos da cidade. Ah... deixa eu contar: sabe aquele lance da PM, em que o capitão da corporação lá do 8º, que expediu um oficio para os seus subordinados mandando os policiais abordarem os pretos e os pardos com idade de 15 a 29 anos? Pois bem, o Urucungos, durante o cortejo do bloco passou em frente o quartel dos caras, que fica bem na cara do gol da sede do grupo em silencio.
 
E dai?
 
E dai que foi uma coisa parecida com aqueles protestos de desobediência civil das lutas do negros nos USA. Na hora da fita parecia mais um cortejo fúnebre. O batalhão da percussão veio tocando e o povo cantando até que chegou em frente ao quartel. Aí parou-se tudo e todos passaram em silencio olhando para o quartel e os soldados que lá estavam ficaram olhando sem entender nada, mas lá dentro, os oficiais que estavam de plantão ficaram atento pensando ser de fato, o protesto do movimento negro contra a ordem daquele capitão.
 
E ficou só nisso?
 
Sim, essa era a diretriz do Urucungos para apoiar a campanha do movimento negro contra esse ato racista, mas vão ter outras paradas sobre esse fato. No dia 17 vai ter um manifesto lá no Taquaral com todo mundo do movimento.
 
Bacana então, pena que eu perdi.
 
Perdeu mesmo, mas o Roniel Felipe, aquele jornalista que fez aquele livro sobre a Vila Bela, "Negros Heróis" postou umas fotos da hora no Face. Mas vai vendo, na segunda fomos para o Embú das Artes participar junto com o Bloco Kambinda, liderado pelo Teatro Popular Solano Trindade de um cortejo de maracatu no carnaval municipal de Embú.
 
É como anda a Raquel?
 
Está bacana e vibrante. Sabe como é que e a Raquel né? Ela não para.
 
E aí, a parada lá foi bacana também
 
Foi... juntou o pessoal do Solano, do Urucungos, um grupo lá de Sorocaba, um pessoal do Sul e a galera do Embú para compor o Bloco. Bacana mesmo.

E o carnaval da Bahia?

Aquilo está estranho. Veja você: quarta feira estava lendo a entrevista do João Jorge, presidente do Olodum, quando ele disse que o carnaval em Salvador se transformou no Carnaval de uma artista só, no caso a Ivete Sangalo. O Oludum já se apresentou em 37 países, quatro Copas do Mundo e tocou com os 30 maiores artistas mundiais da atualidade e não tem espaço na grade de visibilidade do Carnaval baiano. Quando o Ylê Ayê, Os Filhos de Gandhi e o próprio Olodum participam nos seus circuitos, os patrocinadores de camarotes e da mídia ignoram totalmente esses blocos porque estão nas suas raízes, os cantos de protestos e o questionamentos impostos pela economia global, que sufoca o próprio carnaval baiano.
 
E o Carlinhos Brown?
 
Ele agora quer criar o Afrodromo para os blocos afro desfilarem. Já tem gente caindo matando em cima dele, principalmente o movimento negro e os especialista em sociologia porque é exatamente isso que o sistema quer. Negros não precisa ficar juntos no circuito Barra/Ondina, onde fica a fina flor da Dinamarca, pretos e pardos tem que ficar nos guetos, nos seus afrodromos, no Campo Grande, no Curuzu e na Liberdade levando porra da policia. Pretos e pardos não podem ficar fora do seu lugar padrão.
 
O Gil está nesta polemica?
 
O Gil diz que a dicotomia das relações entre o sagrado e o profano passa pela lógica das leis transcendentais que rege o legado dos realces, sendo ele disseminado assim que o bloco passar na transbordação do Axé e da Bossa Nova.
 
Ah...
 
É isso aí meu... acho que vou sair fora porque minha preta esta me esperando pra gente fazer compra.
Podes crer, fiz isso ontem, hoje vou tomar umas breja, boa sorte e a gente se vê.
Na fé, vai nas encruzas com o corpo fechado
 
Saravá meu irmão.
 

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Solidariedade a dom Pedro Casaldáliga e ao povo Xavante

 Comitê de solidariedade a dom Pedro Casaldáliga e ao povo Xavante

Desde novembro de 2012, d. Pedro Casaldáliga, bispo emérito da Prelazia São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, vem recebendo ameaças de morte devido à sua luta pela devolução das terras batizadas como Marãiwatsédé aos índios da etnia Xavante. No início de dezembro, após a Justiça derrubar dois recursos que tentavam adiar a retirada dos não índios da região, agora chamada Gleba Suiá Missú, ele teve de se deslocar contra sua própria vontade para uma localidade não revelada para sua própria segurança.

Ainda assim, d. Pedro retornou em 29 de dezembro a São Félix, estando agora sob proteção policial. Porém, além de Casaldáliga, diversas lideranças indígenas e agentes da pastoral também estão sendo ameaçados desde que o Incra iniciou o processo de desintrusão da região.
 
Breve Histórico:
 
Com 165 mil hectares (ha) a Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé está localizada entre os municípios de São Félix do Araguaia, Alto da Boa Vista e Bom Jesus do Araguaia. Estudos antropológicos comprovam que o povo Xavante já ocupava o território desde muito antes dos primeiros não índios lá chegarem. Contudo, em 1966 o Governo Militar de Castelo Branco os removeu forçadamente em aviões das Forças Aéreas Brasileiras (FAB) para cerca de 400 quilômetros de seu território tradicional, enviando-os para a Missão Salesiana São Marcos, onde dois terços dos indivíduos acabaram sendo dizimados devido a um surto de sarampo.
 
A remoção foi influenciada pela família Ometto, de origem paulista e então proprietários da Fazenda Suiá Missú, para que pudessem ampliar seu latifúndio. Os proprietários convenceram os superiores da Missão Salesiana S. Marcos a aceitarem os índios e a fazenda se tornou uma das maiores propriedades rurais do mundo, senão a maior. Documentos da Prelazia de São Félix relatam que desde então os Xavantes “voltam anualmente a sua terra para apanhar o Pati, árvore por eles usada na confecção dos seus arcos e flechas”.
 
Em 1980, no entanto, as terras da Suiá Missú foram vendidas à empresa petrolífera italiana Agip Petróleo, que foi pressionada, inclusive internacionalmente, a devolver o território aos indígenas. Em 1992, na conferência Eco 92, ocorrida no Rio de Janeiro, a empresa finalmente informou que realizaria a devolução das terras aos Xavantes. Porém, na mesma semana do evento, o então gerente da fazenda, Renato Grilo, se reuniu com diversos políticos e representantes locais no Posto da Mata (distrito de Estrela do Araguaia) para incentivar a população a se apropriar definitivamente da região.
Na ocasião, estavam presentes o então prefeito de São Félix do Araguaia (e atual, eleito para a gestão 2013-16), José Antonio de Almeida (PPS/MT), o "Baú", e o advogado Ivair Matias, além de muitos grandes fazendeiros e a população que começava a chegar na região. Em gravação da Rádio Mundial FM, registrada em 20 de junho de 1992, Baú conta à população presente que "em 1966 (os índios) 'foram embora' para uma outra reserva". Dr. Ivair incentiva a invasão por parte do povo: "vem vindo por aí, caravanas imensas de famílias (...) aqueles que têm alguma esperança de ver concretizada essa reserva (indígena), pode 'tirar o cavalinho da chuva'; e isso está nas mãos dos senhores".
 
Na mesma reunião também estava o ex-prefeito de São Félix, Filemon Gomes Costa Limoeiro (PSD/MT), que incitava o ódio da população contra os índios: “Aqueles que estão preocupados com os índios que tem que assentar, tem um monte de país que não tem índio, pode levar a metade. (...) Na Itália tem índio? Não, não tem. Leva! Leva pra lá!... Carrega pra lá! Agora, não vem jogar em nós [sic], não". E Baú enfatiza: “Se a população achou por bem tomar conta dessas terras em vez de dá-la para os índios, nós temos que dar respaldo a esse povo (...) é o próprio povo que está entrando. (...) Esta área ainda não foi passada a escritura para os índios, ainda é da fazenda. (...) Não queríamos índios aqui porque se não ia desvalorizar toda a região (...) e nós esperamos que tenhamos sucesso em não aceitar o retorno dos índios".

Entretanto, são estes mesmos proprietários que atualmente, em diversas entrevistas, têm relatado à imprensa que nunca tiveram conhecimento de nenhum Xavante na região. Como o ex-prefeito Filemon, proprietário das fazendas Aripuanã e Saraiva, que juntas somam 565,5 ha.

O estudo entre Funai, Incra e Ibama confirma que apenas 22 fazendas pertencentes a grandes proprietários ocupam um terço do território, ou 43 mil hectares. “Estas fazendas foram as principais responsáveis pelo rápido desmatamento da área (...) é a terra indígena com maior área desmatada da Amazônia Legal, com 61,5% do território desmatados", aponta o relatório.
 
Entre os grandes proprietários estão o ex-vice-prefeito do município de Alto da Boa Vista, Antonio Mamede Jordão, dono da Fazenda Jordão, com a maior propriedade registrada: 6.193,99 ha; e o ex-prefeito, também de Alto da Boa Vista, Aldecides Milhomem de Cirqueira, que possui seis fazendas, num total de 2.200 ha; e o desembargador do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Manoel Ornellas de Almeida, cuja fazenda tem 886,8 ha.
 
Também estão entre estes proprietários os irmãos Gilberto Luiz de Resende, o Gilbertão, e Admilson Luiz de Resende, responsáveis por incentivar a invasão dos posseiros, o que na época foi apelidado de “reforma agrária privada”. Gilbertão é citado em inquérito da Polícia Federal por grilagem de terra, trabalho escravo e por utilizar capangas para espancar trabalhadores, além de ser dono de quase 2.700 ha de terras da região. Admilson é ex-vereador de Alto Taquari e tem três fazendas que somam o total de 6.641,3 ha.
 
A população mais uma vez é feita de refém e utilizada como massa de manobra nos ataques contra o povo Xavante, d. Pedro Casaldáliga e agentes da pastoral. Os conflitos são inflamados justamente pelos grandes proprietários que, em sua ganância e poder, passaram a ameaçar Casaldáliga e os indígenas envolvidos com o processo de desintrusão de Marãiwatsédé.
 
O Estado Brasileiro também se coloca como cúmplice dos conflitos na região, quando permite que por mais de vinte anos estas terras fossem invadidas e os processos judiciais caminhassem em tamanha morosidade. Também chama atenção o fato de que o advogado da Associação dos Produtores Rurais da Suiá Missu, entidade que representa os invasores, é Luiz Alfredo Abreu, irmão da senadora Kátia Abreu (PSD/TO), representante maior da chamada “bancada ruralista” no senado.
Durante todo este período o território Xavante foi ocupadoprincipalmente por poderosos fazendeiros, políticos, e empresários que se apoderaram de grandes fatias da terra, enquanto os pequenos produtores eram incentivados a obter áreas de no máximo 100 ha. Os estudos que identificaram a área foram concluídos em 1993 e a demarcação do território homologada em 1998, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
 
Somente em 2004 os Xavantes conseguiram retomar uma reduzida parcela de seu território após ocupar por 10 meses a Rodovia BR-158. Mas foi apenas em 2010, após muito tempo entre êxodos e sofrimento do povo Xavante que a Justiça Federal determinou, em decisão unânime da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a saída dos não índios das terras que compõem Marãiwatsédé.
 
Apesar de sua indiscutível resistência, o processo de retomada e permanência dos povos originários às suas terras é sempre muito árduo e doloroso para os índios. Tem sido assim com os Guarani Kaiowás, no Mato Grosso do Sul; com os Pataxós Hãhãhãe e Tupinambás de Olivença, no sul da Bahia; os Tembé, no nordeste do Pará; entre tantas outras etnias espalhadas pelo Brasil. Também não podemos esquecer da luta pela preservação da relação sociocultural e ambiental destes territórios, como tem sido com as mais de 20 etnias residentes na Bacia do Rio Xingu, ameaçadas pelas obras de Belo Monte.
 
Como todos estes, os Xavantes batalham e esperam há mais de 50 anos pela devolução de seu território ancestral. Sua luta, assim como a de dom Pedro Casaldáliga, é legítima e é também nossa, e não pode se tornar mais um capítulo entre tantos, cujos desfechos resultaram em mortes e derramamento de sangue.
 
Nesse sentido, manifestamos nossa irrestrita solidariedade ao povo Xavante e a d. Pedro Casaldáliga, que no próximo 16 de fevereiro completará 85 anos de idade. Pedimos que entidades em defesa dos direitos humanos, movimentos populares, sindicatos, pastorais, partidos políticos, movimento estudantil e todos que lutam e se colocam enquanto sujeitos ativos na transformação da sociedade estejam em unidade para denunciar a situação de violência e tensão na região de Marãiwatsédé, que mais uma vez ameaça vidas em nome da acumulação de capital.

Comitê de solidariedade a dom Pedro Casaldáliga e ao povo Xavante
São Paulo, janeiro de 2013
Leia a carta da comunidade Xavante de Marãiwatsédé à sociedade brasileira:
http://goo.gl/AMr4V
O ato acontecerá na Câmara Municipal de São Paulo, 07 de fevereiro (quinta-feira), às 19h, no Salão Nobre - 8º andar.

Contatos para inclusão de assinaturas e dúvidas:
Paulo Pedrini: pcpedrini@ig.com.br
Alexandre Maciel: alexandre.maciel.silva@gmail.com
Alexandre Ferreira: aleterralivre@riseup.net

Assinam esta nota:
Agenda Colômbia-Brasil
ACAT Brasil
Casa da solidariedade
Centro Acadêmico Benevides Paixão
CIMI
Coletivo Bancários na Luta
Coletivo Socialismo e Liberdade / PSOL
Comitê Paulista pela Memória, Verdade e Justiça
CORSA – Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade e Amor
CSP Conlutas
ECLAEspaço Cultural Latino Americano
Escola da Cidadania da Região Sul de São Paulo
Executiva Estadual da CSP Conlutas-Tocantins
Fórum das Pastorais Operárias da Arquidiocese de São Paulo
Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais - GPPS-Unioeste-Paraná
Instituto Zequinha Barreto
Intersindical
Jornal Voz da Comunidade
Mand. Deputado Estadual Carlos Gianazzi / PSOL
Mand. Deputada Federal Luiza Erundina / PSB
Mand. Deputado Federal Ivan Valente / PSOL
Mand. Vereador Toninho Vespoli / PSOL
Pastoral da Diversidade
Pastoral Operária
PCB
PSOL
PSTU
Rede de Proteção Autônoma aos Militantes Ameaçados de Morte
Sefras – Associação Franciscana de Solidariedade
Sinasefe - Seção Palmas
Sindicato dos Bancários de Santos e Região
Sindicato dos Químicos Unificados de Campinas, Osasco e Vinhedo
SINTARESP - Sind. dos Téc. em Radiologia do Estado de São Paulo
Sp-Warria Werken
Terra Livre - Movimento Popular do Campo e da Cidade
Tribunal Popular
Unidos Pra Lutar