Na minha inesquecível graduação em Pedagogia Plena, na Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP -, um texto socializado na disciplina de Antropologia e Educação, ministrada pelo estimado professor e amigo, Crisoston Terto Vilas Boas - me deixou em estado heurístico, catártico e também emblemático. Tratou-se de nada mais nada menos este está logo abaixo. Se possível, leia-o ou quem sabe, releia-o.
De quando em vez, ou seja, muitas das vezes no dia a dia me deparo ou tomo conhecimento de intolerâncias contra o outro. Esse outro que apontamos ser diferente de si porque a cor de pele é direferente da sua ou a sua religião ou ausência de uma, sua origem geográfica, opção sexual ou orientação, etnia, cor ou o jeito do seu cabelo, seu andar, as marcas que usa ou se não as usa... Ou melhor, a rejeição pelo outro, a intolerância com o outro seja qual for o "seu" ou "nosso" motivo!!!
Nessa disciplina - interagimos bastante com o Prof. Dr. Crisoston e com ele muito aprendemos e ressignificação, nos autoformamos e nos formamos "educador(a) educando" - como nos ensinava o mestre Paulo Freire. Aprendemos, incluisve, uma abordagem que impulsiona ou dimensiona melhor nossos vértices para os pontos de vista: o RELATIVISMO CULTURAL...
Enfim, eis o texto. Faça ou refaça a sua leitura com a luz do Relativismo Cultural. Ele pode nos ajudar diante dos estúpidos pontos de vista que temos do "outro".
Boa leitura!!!
AR
O RITUAL DO
CORPO ENTRE OS SONACIREMA
Horace Minner*
O antropólogo
tornou-se tão familiarizado com a diversidade de modos com que diferentes povos
reagem diante de situações similares, que ele não consegue se surpreender com
os costumes mais exóticos possíveis. Com efeito, se quaisquer entre todas as
combinações logicamente possíveis de comportamento não tiverem sido encontradas
em alguma parte do mundo, ele tem o direito de suspeitar que elas devem estar
presentes em alguma tribo ainda não estudada. Esta observação já foi realmente
feita pro Neerdeek, no que diz respeito à organização clânica. Neste sentido,
as crenças e práticas mágicas dos Sonacirema apresentam aspectos tão pouco
usuais que nos parece importante descrevê-los como exemplo dos extremos a que o
comportamento humano pode chegar.
O Prof. Linton
foi o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o complexo ritual dos
Sonacirema, há vinte anos atrás, mas a cultura deste povo é ainda pouco
compreendida. Os Sonacirema são um grupo norte-americano que vive no território
que se estende desde os Cree do Canadá, aos Yaqui e Tarahumara do México, e aos
Caribe e Aruaque das Antilhas. Pouco se sabe quanto à sua origem, embora a
tradição mítica afirme que eles vieram do leste.
A cultura
Sonacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente desenvolvida,
que se beneficiou de um habitat cultural muito rico. Embora a maior parte do
tempo das pessoas, nesta sociedade, seja devotada à ocupação econômica, uma
grande porção de frutos destes trabalhos e uma considerável parte do dia são
despendidas em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano,
cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante de ethos deste
povo. Embora tal tipo de preocupação não seja realmente pouco comum, seus
aspectos cerimoniais e a filosofia aí implícitas são únicas.
A crença
fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é
feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal
corpo, a única esperança do homem é evitar estas características, através do
uso de poderosas influências do ritual e de cerimônia. Todo o grupo doméstico
possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais
poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a
opulência de uma casa é freqüentemente aferida em termos da quantidade dos
centros de rituais que abrigam. A maioria das casas é de taipa, mas os
santuários dos mais ricos têm as paredes cobertas de pedra. As famílias mais
pobres imitam os ricos, aplicando placas de cerâmica nas paredes dos seus
santuários.
Embora cada
família possua ao menos um destes santuários, os rituais a eles associados não
são cerimônias familiares, mas sim privadas e secretas. Os ritos, normalmente,
só são discutidos com as crianças, e isto apenas durante a fase em que elas
estão sendo iniciadas nestes mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os
nativos uma relação que me permitiu examinar este santuário e anotar a
descrição destes rituais.
O ponto focal do
santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os
inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que
poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários profissionais
especializados. Dentre estes, os mais poderosos são os curandeiros, cujos
serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto,
o curandeiro não fornece as poções curativas para seus clientes, decidindo
apenas os ingredientes que nelas devem entrar, escrevendo-os em seguida em uma
linguagem antiga e secreta. Tal escrito só pode ser decifrado pelo curandeiro e
pelos herbanários, os quais, mediante outros presentes, fornecem o feitiço
desejado.
O feitiço não é
descartado depois de ter servido a seu propósito, mas sim colocado na caixa de
mágica do santuário doméstico. Como estes materiais mágicos são específicos
para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias
deste povo são muitas, a caixa de mágicas costuma estar sempre transbordando.
Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia
original, e temem usá-los de novo. Embora os nativos tenham se mostrado vagos
em relação a esta questão, só podemos concluir que a idéia subjacente ao
costume de se guardar todos os velhos materiais mágicos, é a de que sua
presença na caixa de mágica, diante da qual os rituais do corpo são encenados,
protegem de alguma forma o fiel.
Embaixo da caixa
de mágicas existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família, em sucessão,
entra no quarto do santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura
diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução.
As águas sagradas são obtidas do Templo da água da comunidade, onde os
sacerdotes conduzem elaboradas cerimônias para manter o líquido ritualmente
puro.
Na hierarquia
dos profissionais da magia e abaixo do curandeiro em termos de prestígio, estão
os especialistas, cuja designação é melhor traduzida por
“homens-da-boca-sagrada”. Os Sonacirema têm um horror pela boca e uma
fascinação por ela que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição
da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Não fosse
pelos rituais da boca, os Sonacirema acham que seus dentes cairiam, suas gengivas
sangrariam, suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam, seus
amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na existência de uma forte
relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma
ablução ritual da boca das crianças que se considera como forma de desenvolver
sua fibra moral.
O ritual do
corpo cotidianamente realizado por todos inclui um rito bucal. Apesar de
sabermos que este povo é tão meticuloso no que diz respeito ao cuidado da boca,
este rito envolve uma prática que o estrangeiro não-iniciado não consegue
deixar de achar repugnante. Conforme foi descrito, o rito consiste na inserção
de um pequeno feixe de cerdas de porco na boca, juntamente com certos pós
mágicos, e em seguida na movimentação deste feixe segundo uma série de gestos
altamente formalizados.
Além deste rito
bucal privado, as pessoas procurar um homem-da-boca-sagrada uma ou duas vezes
por ano. Estes profissionais possuem uma impressionante parafernália que
consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas e agulhas. O uso
destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase e
inacreditável tortura ritual do cliente. O homem-da-boca-sagrada abre a boca do
cliente e, usando as ferramentas citadas, alarga qualquer buraco que o uso
tenha feito nos dentes. Materiais mágicos são então depositados nestes buracos.
Se não se encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais
dentes são serrados, para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na
imaginação do cliente, o objetivo destas aplicações é deter ao apodrecimento
dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do
mito fica evidente no fato de que os nativos retornam todo ano ao
homem-da-boca-sagrada, embora seus dentes continuem a se deteriorar.
Deve-se esperar
que quando um estudo intensivo dos Sonacirema for feito, seja realizada uma
pesquisa cuidadosa sobre a estrutura de personalidade destes nativos. Basta
observar o brilho nos olhos de um homem-da-boca-sagrada quando ele enfia uma
agulha em um nervo exposto, para que se suspeite de que uma certa dose de
sadismo está presente. Se isto puder ser verificado, uma configuração muito
interessante emergirá, posto que a maioria da população mostra tendências
masoquistas bem definidas. Era a tais tendências que o Professor Linton se
referia, ao discutir uma parte especial do ritual cotidiano do corpo, que é
apenas realizada pelos homens. Esta parte do rito envolve uma arranhadura e
laceração da superfície do rosto por meio de um instrumento cortante. Ritos
femininos especiais ocorrem somente quatro vezes por mês lunar, mas o que lhes
falta em freqüência, lhes sobra em barbárie. Como parte desta cerimônia, as
mulheres assam suas cabeças em pequenos fornos durante mais ou menos uma hora.
O ponto teoricamente interessante é que um povo dominantemente masoquista
desenvolve especialistas sádicos.
Os curandeiros
possuem um templo imponente, o latipsoh, em cada comunidade de algum tamanho.
As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de pacientes muito
doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais cerimônias envolvem não só
o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam nas
câmaras do templo com uma roupa e um penteado distintivos.
As cerimônias
latipsoh são tão violentas que chega a ser fenomenal o fato que uma razoável
proporção dos nativos realmente doentes que entram no templo consiga curar-se.
Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às
tentativas de leva-las ao templo, alegando que “é aonde você vai para morrer”.
Apesar disto, os doentes adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para
submeter-se à prolongada purificação ritual, se eles possuem meios para tanto.
Os guardiões de muitos templos, não importa quão doente o suplicante ou quão
grave a emergência, não admitem o cliente se ele não puder dar um rico presente
ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às
cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda
outro presente.
O(a) suplicante,
ao entrar no templo, é primeiramente despido(a) de todas as suas roupas. Na
vida cotidiana, os Sonacirema evitam a exposição de seus corpos quando das suas
funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do
santuário doméstico, aonde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais.
A súbita perda da privacidade corporal, ao se entrar no latipsoh, costuma
causar um choque psicológico. Um homem, cuja própria mulher jamais viu quando ele
realizava um ato excretório, de repente encontra-se nu, assistido por uma
vestal, enquanto executa assim suas funções naturais dentro de um vaso sagrado.
Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas
por um adivinho para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente.
Os clientes femininos, por seu lado, vêm seus corpos nus submetidos ao
escrutínio, manipulação e espetadelas dos curandeiros.
Poucos
suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que
não seja ficar deitados nas camas duras. As cerimônias, como os já citados
ritos do homem-da-boca-sagrada, implicam desconforto e tortura. Com precisão
ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis pacientes,
rolam-nos em seus leitos de dor, enquanto realizam abluções, cujos movimentos
formalizados são objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros
momentos, elas inserem varas mágicas na boca do paciente, ou obrigam-no a comer
substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros
vêm até seus pacientes e atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne. O
fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou possam mesmo matar
o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros.
Ainda resta um
outro tipo de especialista, conhecido como um “escutador”. Este feiticeiro tem
o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que
foram enfeitiçadas. Os Sonacirema acreditam que os pais fazem feitiçaria entre
sues próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma
maldição na criança, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A
contra-magia do feiticeiro “escutador” é singular por sua relativa ausência de
ritual. O paciente simplesmente conta ao “escutador” todos os seus problemas e
medos, começando com as primeiras dificuldades de que pode se lembrar. A
memória exibida pelos Sonacirema nestas sessões de exorcismo é verdadeiramente
notável. Não é incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu ao ser
desmamado, e alguns indivíduos chegam a localizar seus problemas nos efeitos
traumáticos de seu próprio nascimento.
Para
concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na estética
nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e às funções
naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e
banquetes cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos
ainda são usados para fazer os seios das mulheres maiores, se eles são pequenos,
e menores, se eles são grandes. Uma insatisfação geral com a forma dos seios é
simbolizada pelo fato de que a forma ideal está virtualmente fora do espectro
da variação humana. Umas poucas mulheres que sofrem de um quase inumano
desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que podem viver muito bem
através de simples viagens à aldeia, permitindo aos nativos admirá-los mediante
uma taxa.
Já fizemos
referências ao fato de que as funções excretórias são ritualizadas, rotinizadas
e relegadas ao domínio do secreto. As funções reprodutivas naturais são
igualmente distorcidas. O intercurso sexual é tabu como tópico de conversa, e
programado e planejado enquanto ato. Grandes esforços são feitos para evitar a
gravidez por meio de uso de materiais mágicos, ou pela limitação do intercurso
em certas fases da lua. A concepção é realmente muito pouco freqüente. Quando
grávidas, as mulheres se vestem de forma a ocultar seu estado. O parto se
realiza em segredo, sem amigos ou parentes assistindo, e a maioria das mulheres
não amamenta nem cuida dos seus bebês.
Nossa descrição
da vida ritual dos Sonacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado
pela magia. É difícil compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto
tempo debaixo dos pesados fardos que eles mesmos se impuseram. Mas, mesmo os
costumes tão exóticos quanto estes, ganham seu verdadeiro sentido quando
encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski, quem escreveu:
“Olhando de cima
e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é fácil
ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas sem este poder e este guia, o
homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como fez, nem
poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios da civilização.”
Tradução de Eduardo B. Viveiros de Castro
* In American
Anthropologist, vol. 58 (1966). “Body Ritual among the Nacirema”.
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