quarta-feira, 3 de agosto de 2022

PROPOSTA INDECENTE OU O QUE DIZIA CACILDA BECKER...

Por Ademario Ribeiro

- Alô, professor, tudo bem?

- Tudo. Quem fala?

- Aqui é da Escola X. Da TV Ene. Da Universidade B. Da Secretaria C...

- Pois não. Que deseja?

- Professor, quem nos indicou o senhor foi Fulano(a) de tal que tem uma grande admiração por sua Arte, por sua Poesia, por seu Teatro (por sua... por seu...).

- Muito grato! Qual o assunto?

- Vai ter um congresso, um seminário, uma festa em comemoração a ou (ao) dia da ou de e gostaria de convidá-lo para dar uma palavrinha aqui para nossos...

- Quais condições vocês oferecem?

- Não estou entendo... O senhor vem (apenas) para dar tua palavrinha e pronto! Não está bom para você mostrar o teu trabalho?

- E o meu translado de ida e volta? O material que produzi em anos de pesquisa e investimentos pessoais e que vou adaptar para esse momento? Vocês comprariam alguns dos meus livros para acervo da biblioteca de vocês e ou para sortear com os presentes?

- Ah, essa parte é complicada, professor. Não temos recursos para isso!

- Oh, querida, sou autônomo. Meus trabalhos não têm patrocinadores. São investimentos pessoais. Tiro da carne. Tiro da minha família para produzi-los...

- Mas é só uma palavrinha! Que custa?!

- Mas, vocês não têm verbas para essas ações?

- Ah, isso é complicado na hora de prestar contas!

- Não podem fazer uma “vaquinha” junto com teus colegas para custearem pelo menos o transporte e a compra de alguns exemplares do meu último livro?

- Não posso pedir isso à eles!

- Mas pode me pedir que me desloque de onde estou por conta própria, deixe de trabalhar para meu sustento e da minha família e trabalhe de graça para vocês que são uma instituição que pode pagar esse serviço cultural...

- Não é um serviço que queremos: é só uma pecinha de teatro... uma intervençãozinha, uma vivenciazinha, um recitalzinho, uma performancezinha, uma...

- O que crio, produzo, senhor(a) não é assim. Pelo contrário: é fruto de trabalho de estudo e pesquisa. Não tive ou tenho apoio financeiro de nada e nem de ninguém. Os temas que trabalho sempre foram antecedentes às leis, às políticas públicas ou às recomendações de organizações internacionais de fomento à Educação, Educação Étnico-raciais, Cultura, Meio Ambiente, Direitos Humanos, Ciências, Povos e Comunidades Tradicionais, etc.

- Foi por isso mesmo que te convidamos para essas ações...

- Por que não colocam essas ações no plano de trabalho de cada ano? Por que não contratam ações como essas que está me solicitando? Pode ser através de uma MEI, ME, EIRELI, ONG, Associação, por exemplo!

- Não trabalhamos assim!

- Disseram que o senhor tinha um trabalho admirável!

- Mas quem trabalha deve ter o direito de usufruir por seu ofício. Por seus esforços, talento. Algo semelhante ao ditado: “Aranha vive do que tece”.

- ... Porém só estamos te convidando para dar uma palavrinha e você aproveita e divulga teu trabalho! Não vejo nada demais!

- Vejo de menos, inclusive. Observemos: o obstetra, o gari, o policial, o político, o motorista, a moça do caixa do supermercado... esses têm o seu salário, gratificação, pró-labore, etc. para trabalharem... Por que comigo e com meus colegas temos que receber proposta como essa?

- Ah, mas você pode vir para divulgar o teu trabalho, já disse, aliás, nem sei se pode usar o espaço daqui para fazer merchandising!

- Querida, desde os anos 70 que eu atuo nessas áreas que você bem mencionou. Eu não sou emergente! Sou um sobrevivente e como todo mortal que se preza, pago impostos, tributos, taxas, faturas (essas batem sempre à minha porta e não quer "uma palavrinha" e eu que não pague em dia)!

- Ah, todavia o senhor não é famoso, consagrado, não é nenhuma celebridade...

- Não sou e do jeito que você me quer na tua instituição, eu nunca sairei de onde estou, não pagarei minhas contas e nem vou sobreviver! Cacilda Becker dizia: “Não me peça para dar de graça a única coisa que tenho para vender”.