Por Mariana Ferraz
O processo de profissionalização de lideranças se
configura atualmente como a principal estratégia dos movimentos indígenas
para fortalecimento de suas entidades. Segundo a tese de doutorado
“Estratégias sociais no movimento indígena: representações e redes na
experiência da Apoinme”, de autoria de Kelly Emanuelly de Oliveira, pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE,com coordenadores mais
capacitados e orientados politicamente, as organizações indígenas encontram
menos dificuldades em colocar suas propostas e reivindicações em prática no
cenário governamental, seja no nível estadual ou nacional. Segunda maior
organização indígena do país, a Apoinme, que tem sede em Olinda (PE),
representa mais de 150 mil pessoas de 65 etnias com diferentes visões de
política e sociedade.
A tese conclui que está ocorrendo nos movimentos
indígenas um processo de ampliação de relações, de revisão de alianças e
novas possibilidades de inserção política, indo além da denúncia de
realidades sociais e acumulando novas funções, como o diálogo étnico e o
debate de questões de interesse mundial. Segundo a pesquisadora, a Apoinme
tem encontrado “um caminho próprio de valorização das semelhanças entre os
grupos envolvidos”, construindo formas próprias de representação social e
política. No entanto, ela afirma que vem surgindo, simultaneamente, “um
movimento perigoso que vem atribuindo às organizações indígenas regionais uma
responsabilidade como definidores de novos grupos étnicos, que de forma
alguma tem respaldo legal”. Ou seja, a Funai tem solicitado o aval de
organizações indígenas regionais para reconhecer os povos, o que está em
desacordo com a Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho (OIT),
que garante o autoreconhecimento dos grupos, sem intermediários.
Outra mudança constatada foi a renovação da
estrutura organizacional da Apoinme, com a fusão em 2009 das microrregiões do
Piauí e do Rio Grande do Norte e a valorização do Conselho Fiscal, acima,
inclusive, da Coordenação Executiva da entidade, que, segundo
Kelly, “vem tentando navegar entre os mundos da representação política
formal e da representação étnica, de forma a equacionar as dificuldades de
interlocução das duas instâncias”. Para atender às demandas dos diversos
povos, a Apoinme é dividida em nove microrregiões (MRs), cada uma com dois
coordenadores e dois suplentes, agrupadas em quatro núcleos que intermediam o
contato das MRs com a Coordenação Executiva, composta por três membros mais a
coordenadora do Departamento de Mulheres e Jovens.
OBJETIVO - O estudo começou em 2006 e objetivou observar
as diferentes relações estabelecidas entre as lideranças indígenas da Apoinme
na arena política de atuação da entidade, seja na esfera regional, nacional
ou internacional. A obra é dividida em cinco capítulos, que apresentam a
história dos movimentos indígenas no Nordeste, da Apoinme e no País e os
teóricos que estudaram essa problemática social. O trabalho recebeu o
primeiro lugar no Concurso Nelson Chaves de Trabalhos Científicos sobre o
Norte e o Nordeste do Brasil - Edição 2010 – promovido pela Fundação Joaquim
Nabuco (Fundaj) – e será publicado em livro.
A pesquisadora analisou documentos da Apoinme
durante o período do trabalho de campo, em 2007 e 2008, ocasião em que foi
também convidada a auxiliar na redação de um documento descritivo das ações
da entidade desde 1995. No entanto, segundo a pesquisadora, “foi na ampliação
da presença em eventos e mobilizações onde compreendi melhor como se
desenvolve o movimento indígena”. Nesses eventos, Kelly entrevistou líderes
da própria Apoinme, índios não representados por ela e representantes de ONGs
e organizações governamentais, inclusive o presidente da Fundação Nacional do
Índio (Funai), Márcio Meira. “Se por um lado verifiquei a crescente
necessidade das lideranças estarem se capacitando neste diálogo, por outro
foram numerosas as críticas de indígenas que veem esse diálogo mais
aproximado com o Governo como um reflexo de um 'enfraquecimento' do Movimento
Indígena em relação à luta pelos direitos dos grupos étnicos”, explica Kelly.
ORIGENS - A família se apresenta como uma das principais
preocupações dos indígenas engajados na luta por direitos políticos. Os
líderes, além de se verem cercados por problemáticas que – apesar de
recorrentes na maioria dos indígenas envolvidos – têm pouco espaço de
discussão dentro da organização, têm de enfrentar a ausência da família e a
discriminação por parte de “parentes” que não compreendem a atuação política.
Essa ausência leva parte dos líderes a se
distanciar de suas terras e de seus familiares, o que abre uma lacuna na
participação da organização política de seu povo, pois o indivíduo acaba se
afastando de sua terra e seus familiares. Esses problemas pessoais podem
abreviar “a participação de lideranças importantes que, pressionadas por
questões de cunho individual (mas que são, na verdade, coletivas, dado que se
repetem com grande parte deles), optam pela manutenção de suas vidas na
comunidade, priorizando as necessidades de seu povo, de seus filhos,
companheiros e familiares”, constata Kelly.
CRÍTICAS - De acordo com a pesquisadora, as principais
críticas dos indígenas em relação à forma de luta pelos seus direitos são
quanto à falta de preparação dos órgãos de Estado para tratar com questões
étnicas, que têm formas específicas de desenvolvimento. Apesar do
desenvolvimento da relação dos movimentos indígenas com o Estado nos últimos
anos, ainda existem muitas barreiras. Dentro da própria Funai, por exemplo,
algumas administrações regionais não reconhecem as organizações políticas de
grupos indígenas nem praticam o diálogo qualificado com as lideranças. “Outra
questão diz respeito à dificuldade de integração à lógica burocrática
estatal, que dificulta, por vezes, o desenvolvimento de projetos e políticas
públicas nas aldeias”, relata Kelly.
PREMIAÇÃO - Sobre o Concurso Nelson Chaves, Kelly espera que
a publicação de sua tese em livro “possa levar ao conhecimento de mais
pessoas à realidade sobre a organização dos povos indígenas no Nordeste na
atualidade”. O interesse da autora pelas questões indígenas surgiu depois de
conviver com o povo Xukuru, em Pesqueira (PE), num trabalho de
etnodocumentação do grupo. A antropóloga era estudante de jornalismo da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e dessa experiência resultou seu
trabalho de conclusão de curso, intitulado “Mandaru - a história de vida de
Xicão Xukuru". A temática indígena também inspirou sua dissertação de
mestrado em Sociologia, "Guerreiros do Ororubá", sobre a
organização política do povo, sua história de fortalecimento étnico, político
e de reivindicação da terra.
A tese de doutorado foi apresentada por Kelly em
setembro de 2009 e orientada pelo professor Peter Wilfried Schröder. A
expectativa é que a obra possa “ampliar a compreensão da constituição das
organizações do Movimento Indígena no Nordeste e no Brasil, percebendo como
as tensões, disputas e alianças envolvidas no processo de representação
política podem interferir na constituição de projetos coletivos para as
comunidades indígenas”. Kelly é atualmente professora de Antropologia
Jurídica da Faculdade Maurício de Nassau, em João Pessoa.
Mais informações
Professora Kelly Emanuelly de Oliveira
kelly_emanuelly@yahoo.com.br
Pós-Graduação em Antropologia (81) 2126.8286 |
quarta-feira, 2 de abril de 2014
Povos indígenas investem na profissionalização de lideranças como estratégia social e política
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