quarta-feira, 2 de abril de 2014

Povos indígenas investem na profissionalização de lideranças como estratégia social e política


Por Mariana Ferraz
O processo de profissionalização de lideranças se configura atualmente como a principal estratégia dos movimentos indígenas para fortalecimento de suas entidades. Segundo a tese de doutorado “Estratégias sociais no movimento indígena: representações e redes na experiência da Apoinme”, de autoria de Kelly Emanuelly de Oliveira, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE,com coordenadores mais capacitados e orientados politicamente, as organizações indígenas encontram menos dificuldades em colocar suas propostas e reivindicações em prática no cenário governamental, seja no nível estadual ou nacional. Segunda maior organização indígena do país, a Apoinme, que tem sede em Olinda (PE), representa mais de 150 mil pessoas de 65 etnias com diferentes visões de política e sociedade.
A tese conclui que está ocorrendo nos movimentos indígenas um processo de ampliação de relações, de revisão de alianças e novas possibilidades de inserção política, indo além da denúncia de realidades sociais e acumulando novas funções, como o diálogo étnico e o debate de questões de interesse mundial. Segundo a pesquisadora, a Apoinme tem encontrado “um caminho próprio de valorização das semelhanças entre os grupos envolvidos”, construindo formas próprias de representação social e política. No entanto, ela afirma que vem surgindo, simultaneamente, “um movimento perigoso que vem atribuindo às organizações indígenas regionais uma responsabilidade como definidores de novos grupos étnicos, que de forma alguma tem respaldo legal”. Ou seja, a Funai tem solicitado o aval de organizações indígenas regionais para reconhecer os povos, o que está em desacordo com a Convenção 169 da Organização Internacional de Trabalho (OIT), que garante o autoreconhecimento dos grupos, sem intermediários.
Outra mudança constatada foi a renovação da estrutura organizacional da Apoinme, com a fusão em 2009 das microrregiões do Piauí e do Rio Grande do Norte e a valorização do Conselho Fiscal, acima, inclusive, da Coordenação Executiva da entidade, que, segundo Kelly, “vem tentando navegar entre os mundos da representação política formal e da representação étnica, de forma a equacionar as dificuldades de interlocução das duas instâncias”. Para atender às demandas dos diversos povos, a Apoinme é dividida em nove microrregiões (MRs), cada uma com dois coordenadores e dois suplentes, agrupadas em quatro núcleos que intermediam o contato das MRs com a Coordenação Executiva, composta por três membros mais a coordenadora do Departamento de Mulheres e Jovens.
OBJETIVO - O estudo começou em 2006 e objetivou observar as diferentes relações estabelecidas entre as lideranças indígenas da Apoinme na arena política de atuação da entidade, seja na esfera regional, nacional ou internacional. A obra é dividida em cinco capítulos, que apresentam a história dos movimentos indígenas no Nordeste, da Apoinme e no País e os teóricos que estudaram essa problemática social. O trabalho recebeu o primeiro lugar no Concurso Nelson Chaves de Trabalhos Científicos sobre o Norte e o Nordeste do Brasil - Edição 2010 – promovido pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) – e será publicado em livro.
A pesquisadora analisou documentos da Apoinme durante o período do trabalho de campo, em 2007 e 2008, ocasião em que foi também convidada a auxiliar na redação de um documento descritivo das ações da entidade desde 1995. No entanto, segundo a pesquisadora, “foi na ampliação da presença em eventos e mobilizações onde compreendi melhor como se desenvolve o movimento indígena”. Nesses eventos, Kelly entrevistou líderes da própria Apoinme, índios não representados por ela e representantes de ONGs e organizações governamentais, inclusive o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Márcio Meira. “Se por um lado verifiquei a crescente necessidade das lideranças estarem se capacitando neste diálogo, por outro foram numerosas as críticas de indígenas que veem esse diálogo mais aproximado com o Governo como um reflexo de um 'enfraquecimento' do Movimento Indígena em relação à luta pelos direitos dos grupos étnicos”, explica Kelly.
ORIGENS - A família se apresenta como uma das principais preocupações dos indígenas engajados na luta por direitos políticos. Os líderes, além de se verem cercados por problemáticas que – apesar de recorrentes na maioria dos indígenas envolvidos – têm pouco espaço de discussão dentro da organização, têm de enfrentar a ausência da família e a discriminação por parte de “parentes” que não compreendem a atuação política.
Essa ausência leva parte dos líderes a se distanciar de suas terras e de seus familiares, o que abre uma lacuna na participação da organização política de seu povo, pois o indivíduo acaba se afastando de sua terra e seus familiares. Esses problemas pessoais podem abreviar “a participação de lideranças importantes que, pressionadas por questões de cunho individual (mas que são, na verdade, coletivas, dado que se repetem com grande parte deles), optam pela manutenção de suas vidas na comunidade, priorizando as necessidades de seu povo, de seus filhos, companheiros e familiares”, constata Kelly.
CRÍTICAS - De acordo com a pesquisadora, as principais críticas dos indígenas em relação à forma de luta pelos seus direitos são quanto à falta de preparação dos órgãos de Estado para tratar com questões étnicas, que têm formas específicas de desenvolvimento. Apesar do desenvolvimento da relação dos movimentos indígenas com o Estado nos últimos anos, ainda existem muitas barreiras. Dentro da própria Funai, por exemplo, algumas administrações regionais não reconhecem as organizações políticas de grupos indígenas nem praticam o diálogo qualificado com as lideranças. “Outra questão diz respeito à dificuldade de integração à lógica burocrática estatal, que dificulta, por vezes, o desenvolvimento de projetos e políticas públicas nas aldeias”, relata Kelly.
PREMIAÇÃO - Sobre o Concurso Nelson Chaves, Kelly espera que a publicação de sua tese em livro “possa levar ao conhecimento de mais pessoas à realidade sobre a organização dos povos indígenas no Nordeste na atualidade”. O interesse da autora pelas questões indígenas surgiu depois de conviver com o povo Xukuru, em Pesqueira (PE), num trabalho de etnodocumentação do grupo. A antropóloga era estudante de jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e dessa experiência resultou seu trabalho de conclusão de curso, intitulado “Mandaru - a história de vida de Xicão Xukuru". A temática indígena também inspirou sua dissertação de mestrado em Sociologia, "Guerreiros do Ororubá", sobre a organização política do povo, sua história de fortalecimento étnico, político e de reivindicação da terra.
A tese de doutorado foi apresentada por Kelly em setembro de 2009 e orientada pelo professor Peter Wilfried Schröder. A expectativa é que a obra possa “ampliar a compreensão da constituição das organizações do Movimento Indígena no Nordeste e no Brasil, percebendo como as tensões, disputas e alianças envolvidas no processo de representação política podem interferir na constituição de projetos coletivos para as comunidades indígenas”. Kelly é atualmente professora de Antropologia Jurídica da Faculdade Maurício de Nassau, em João Pessoa.
Mais informações
Professora Kelly Emanuelly de Oliveira
kelly_emanuelly@yahoo.com.br Este endereço de e-mail está protegido contra SpamBots. Você precisa ter o JavaScript habilitado para vê-lo.
Pós-Graduação em Antropologia (81) 2126.8286
 
Fonte: http://www.ufpe.br/agencia/index.php?option=com_content&view=article&id=38996:povos-indigenas-investem-na-profissionalizacao-de-liderancas-como-estrategia-social-e-politica&catid=439&Itemid=77

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