quarta-feira, 4 de abril de 2012

MÉDICOS, PAJÉS E REZADEIRAS


MÉDICOS, PAJÉS E REZADEIRAS
José Ribamar Bessa Freire
25/01/2009 - Diário do Amazonas

O que aconteceu, afinal, com LB, a menina Tukano de 12 anos, que foi picada por uma cobra jararaca, quando pescava, no início do mês, em Pari Cachoeira? De lá até Manaus são mais de 1.100 km, e sete dias de barco. Dois dias depois, ela já chegou a São Gabriel da Cachoeira, com sinais de necrose.

Dali foi, então, transferida para Manaus, criando uma polêmica, apresentada pela TV Globo, no Jornal Nacional. É que os índios recusaram a amputação do pé esquerdo dela, indicada pelos médicos, e insistiram em celebrar um ritual de pajelança dentro do Hospital João Lúcio, na Zona Leste de Manaus, onde estava internada desde o dia 14.

O Hospital, no entanto, rejeitou a pajelança e as restrições alimentares sugeridas pelos índios, bem como a proibição de acesso ao local de gestantes e mulheres no período menstrual. O diretor do Hospital, Joaquim Alves, sem entender o que é a pajelança, achou que o ritual produziria barulho: "Eles não podem fazer os rituais com tambores, o som da cerimônia incomoda os outros pacientes. Além disso, não temos conhecimento da eficácia no resultado da aplicação conjunta das ervas com os medicamentos convencionais".

Descontente, o tio da menina, João Paulo Barreto, invocou o artigo 213 da Constituição, que reconhece aos índios seus costumes, línguas, crenças e tradições. O Ministério Público recomendou, então, um tratamento combinado da medicina indígena com os métodos convencionais. A menina foi transferida para a Unidade de Apoio Clínico Hospitalar Indígena (Uachi), e daí para o Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), onde foi reservado um espaço para a realização dos rituais de cura. Agora, ela está sendo tratada por pajés e por um cirurgião.

As ervas dos bárbaros
Esse não é um caso isolado. No Alto Rio Negro, acidentes com mordidas de cobras ocorrem com muita frequência e matam mais do que no resto do Brasil. Os especialistas explicam que o veneno da jararaca da região é trinta vezes mais potente do que das cobras de São Paulo, limitando assim a eficácia do soro genérico produzido pelo Ministério da Saúde. Em 2006, uma equipe do Instituto Butantã planejou coletar serpentes no Rio Negro, mas os resultados ainda não apareceram.
Nas comunidades indígenas da região, quando alguém é mordido por cobra, procura logo o pajé. Ele, muitas vezes, resolve com os conhecimentos acumulados nos últimos dois milênios. Mas o pajé, como o médico, não faz milagres. Nesse caso, a família procura o polo-base do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que, dependendo da gravidade, transfere o paciente a São Gabriel para receber o soro antiofídico, segundo Andreza Andrade, do Instituto Socioambiental (ISA).

Lá, as equipes de saúde costumam realizar um tratamento em conjunto com o pajé, unindo a medicina tradicional indígena com a medicina ocidental. O médico gaúcho Oscar Soares, que vem atuando há vários anos no polo de Iauareté, na fronteira com a Colômbia, testemunha que “essa nova concepção de tratamento tem ajudado muito na recuperação dos pacientes”.

Os índios do Rio Negro estão convencidos de que a amputação do membro afetado, tal como indicado pelos médicos, não é cura. Por isso, demonstram resistência em se submeter a esse procedimento. Foi o caso do índio Fernando José Baniwa, de 62 anos, cuja amputação da perna estava recomendada, programada e marcada. A família lutou bastante, conseguiu retirá-lo do hospital e levá-lo de volta à comunidade, onde foi tratado. Depois de um ano, ficou bonzinho e voltou a andar, segundo Andreza Andrade.
O médico holandês Guillerme Piso (1611-1678), que morou oito anos em Pernambuco como médico de Maurício de Nassau, confirma a eficácia da medicina indígena. No livro sobre a história natural e médica do Brasil, ele repete o pensamento dominante de que os índios eram “povos ignorantes, bárbaros, atrasados e de nenhumas letras”, mas registra, maravilhado, como os pajés evitaram que muito soldado virasse saci.

“Lembro-me que os bárbaros, nos acampamentos, por meio de gomas frescas, sucos e bálsamos, livraram do ferro e do fogo e restabeleceram com êxito os membros dos soldados feridos por balas de espingardas, que estavam para ser amputados por cirurgiões europeus, lusitanos e batavos... Na preparação, prescindem de laboratórios e, ademais, sempre tem à mão sucos verdes e frescos de ervas...”.

Soro, raízes, rezas
A medicina ocidental realizou conquistas admiráveis, mas se não reconhecer outras formas de conhecimento, vai continuar decepando pernas e braços que poderiam ser, algumas vezes, preservados. A boçalidade ocidental confunde os saberes indígenas com crença absurda, superstição, folclore, exotismo. “Quem não sabe, não vê”, critica o psicólogo uruguaio Nestor Ganduglia, para quem é preciso escutar os índios e seus saberes, abandonando a posição arrogante da cultura ocidental ensinada em nossas escolas, que consideram o saber científico como o ‘único universalmente válido’.

Nesses tempos bicudos de crise identitária, o conhecimento acadêmico ocidental se mostrou incapaz de resolver, sozinho, as necessidades sociais básicas. Por isso – escreve Ganduglia – a busca de novas sínteses entre saberes é uma necessidade urgente. Não se trata, portanto, de ‘estudar a natureza do homem primitivo’, mas de poder reconhecer, a partir de uma postura aberta de aprendizagem, o saber quase clandestinamente oculto nas entrelinhas dos ritos de pajelança e das narrativas populares.

Essa ideia é reforçada pelo antropólogo Roberto da Mata: “Nós estudamos os índios, não porque eles estão desaparecendo ou só para denunciarmos as injustiças que sofrem, mas para realmente aprendermos com eles as lições que não sabemos”. Tal aprendizagem, porém, só é possível, se nos convencemos da nossa ignorância. “Nosso estudo das sociedades tribais deve estar fundado na troca igualitária de experiências humanas e no fato de que podemos realmente aprender a nos civilizar com elas”.

No momento em que escrevo, ignoro o estado de saúde da menina Tukano. De qualquer forma, o tratamento baseado no diálogo respeitoso entre médico e pajé tem dados frutos. No sertão cearense, os índices de mortalidade infantil caíram depois que médicos, rezadeiras e raizeiros trabalharam juntos no programa “Soro, Raízes e Rezas”. Dependendo do caso, ou as 188 rezadeiras encaminhavam o paciente para o posto de saúde, ou o médico receitava uma visita a elas. De 36 óbitos para cada 1.000 nascidos vivos, em 1998, registrou-se apenas 13 em 2003. Vidas podem ser salvas se a gente aprende o caminho da tolerância. Parece tão evidente, não é não?
P.S. – Morreu o líder indígena do Vale do Javari, Edílson Kanamari, conhecido nacionalmente. De hepatite. Perguntem a FUNASA – órgão encarregado da saúde indígena - quem é o responsável pela morte.


Referências

1. Jornal Nacional – 20/01/2009 - Índia mordida por cobra divide médicos e pajés
2. Andreza Andrade. Mordida de cobra mata muito mais no Rio Negro do que no Restante do Brasil. Instituto Sociambiental. ISA. 26/06/2006. In Povos Indígenas no Brasil 2001/2005., pp.272-273
3. Guilherme Piso. História Natural e Médica da Índia Ocidental Coleção de Obras Raras. Rio de Janeiro. Instituto Nacional do Livro. 1957. Traduzida e anotada por Mário Lôbo Leal
4. Soro, raízes e rezas para crianças reduzem mortalidade no Ceará. Gazeta Mercantil. São Paulo, 25/11/2003.


Adaptado da fonte: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=35

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