quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Criação de universidade indígena começa a ser discutida em março

Foto: www.seduc.ro.gov.br

Por Ionice Lorenzoni

Indígenas, professores e pesquisadores de universidades e de instituições públicas e o Ministério da Educação começam a discutir, em março, a criação de instituição de educação superior intercultural indígena. Para tratar desse tema, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, constituiu um grupo de trabalho com seis representantes indígenas, seis de instituições e quatro do MEC.

Macaé Evaristo, secretária de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, que vai coordenar o grupo de trabalho, explica que a tarefa da equipe será gerar o melhor desenho de como trabalhar os saberes indígenas, e não simplesmente levar o índio para dentro de uma universidade. “O grupo não vai pensar em uma universidade, mas como construir no país, dentro das universidades públicas, uma rede que dê conta de tratar das questões indígenas nas diferentes áreas.”


O desenho proposto pela coordenadora do grupo deve levar em conta as diferenças étnicas dos povos, o acúmulo de conhecimentos e as distâncias de um país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados. O censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010, contou 896.917 pessoas que se declararam indígenas, 305 etnias e 274 línguas faladas.

De acordo com Macaé, os povos indígenas do Brasil querem mais que a formação específica de professores, que já é oferecida por 20 universidades públicas; eles querem cursos de saúde, gestão territorial, de direito. A criação de territórios etnoeducacionais, por exemplo, gerou a necessidade de qualificação em gestão, que é reivindicada por diversos povos. “Eles querem se preparar para coordenar a gestão dessas áreas”, diz Macaé.

Agenda – A reunião de março vai definir a agenda e um calendário de atividades do grupo de trabalho. A coordenadora vai sugerir encontros com pesquisadores da temática indígena e com lideranças dos povos que compõem o mapa da diversidade brasileira.

A universidade indígena, segundo Macaé Evaristo, é ainda um tema novo no país, mas outras nações do continente americano têm uma longa trajetória de diálogo com os diferentes conhecimentos gerados por esses povos antes e depois da chegada dos europeus. Ela vai sugerir a realização de um seminário internacional para ouvir experiências de países como a Bolívia, que tem cinco universidades de povos indígenas e 22 cursos; a Nicarágua, que tem duas universidades e 10 cursos; o México, que conta com oito universidades e 49 cursos, e os Estados Unidos, onde há duas universidades.

Confira a Portaria nº 52, de 24 de janeiro de 2014, que cria o grupo de trabalho e relaciona os 16 integrantes.

Fontes: Portal do MEC
http://indiosnonordeste.com.br/2014/01/29/criacao-de-universidade-indigena-comeca-ser-discutida-em-marco/#more-2081

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Controle social na saúde indígena: um livro de leitura urgente e balizadora

Controle social na saúde indígena: a experiência da OPAN em Brasnorte, MT

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Apresentação

No âmbito e contexto das Conferências Nacionais de Saúde Indígena e no processo de ampliação das ações que o Estado brasileiro oferecia em consequência das mesmas, a OPAN foi procurada pelo Ministério da Saúde, via DESAI/Funasa, em 1999, para contribuir de maneira inicial no estabelecimento de serviços de saúde que chegassem até as aldeias como serviços que pudessem ser caracterizados como atenção primária de saúde.

Realizamos esse serviço e essa atenção com as pessoas, com as famílias, com as comunidades indígenas, a partir de um modelo de atuação atento às especificidades social e cultural dos povos Enawene Nawe e Myky/Irantxe (Manoki), em um modelo diferenciado daqueles oferecidos ao conjunto da sociedade nacional. Nesse sentido, fortalecer a organização desses povos e os DSEIs (DSEI Cuiabá) na concretização do subsistema de saúde indígena, contribuindo para a consolidação de uma Política Nacional de Saúde Indígena (PNASI), foi sempre nosso interesse mais amplo.

Para registrar esta experiência, seguem os produtos gerados em 2011, previstos na execução do último ano do convênio, relativos ao encerramento desse trajeto de 12 anos de trabalho. A OPAN encomendou a especialistas análises sobre séries temporais, para subsidiar os rumos que serão dados daqui por diante na PNASI com base na experiência vivida pela Operação Amazônia Nativa na atenção à saúde dos Povos Myky/Manoki e Enawene Nawe no Polo Brasnorte em Mato Grosso – agora em 2013 trazidos a público por ocasião da 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena.

Em nossa atuação, destacamos o diálogo permanente com as comunidades, com os profissionais de saúde contratados e com os chamados conselhos do controle social. Sempre entendemos que esses conselhos precisam ter autonomia e liberdade para exercer suas funções não apenas como espaço de cobranças, mas como um conselho que orienta e observa primeiramente quais são os fatores que geram saúde nas comunidades indígenas. Os conselhos locais podem indicar quais são as verdadeiras “causas das doenças”, dizendo se são doenças provocadas por espíritos, por problemas de má alimentação, de desorganização social, por conflitos entre gerações, por falta de perspectivas e esperança da sociedade ou ainda outras causas. O Condisi, por sua vez, zela e garante que os planos de trabalho sejam pensados e aprovados para execução mediante essas discussões realizadas nos conselhos locais das aldeias.

Neste sentido, a gestão da saúde é, antes de tudo, uma responsabilidade das famílias e das comunidades.  

E, a fim de resolver o que a falta de saúde provoca, todos são responsáveis em união de esforços, considerados sempre os papéis das autoridades locais e da entidade gestora. A atenção diferenciada depende, portanto, desse diálogo permanente e da capacidade dos DSEIs se constituírem como unidades gestoras autônomas a partir do estabelecimento de relações de respeito mútuo onde o controle social seja efetivamente capaz de construir orientações precisas para o desenvolvimento das equipes de profissionais e de um trabalho integrado às realidades locais.

Ao gerir recursos públicos no campo da saúde indígena, a OPAN buscou cumprir com sua responsabilidade de gestora e, ao mesmo tempo, informar as comunidades indígenas sobre todos os trâmites burocráticos que implica um convênio com um órgão público.

Neste diálogo constante com as comunidades, nesta parceria também com os profissionais contratados (e nos planos de trabalho e pactos construídos coletivamente), em 12 anos de convênio não registramos nenhuma ação trabalhista contra a OPAN. Concluímosnossa missão com boa avaliação dos povos Myky, Manoki e Enawene Nawe não obstante as limitadas condições oferecidas pela Funasa nos últimos anos de convênio para uma gestão mais autônoma.

Assim, esse conjunto de quatro trabalhos constitui-se como uma retrospectiva histórica da execução dos serviços pela conveniada, quanto da perspectiva demográfica, epidemiológica, antropológica e nutricional desses povos resultante da organização e execução dos serviços a eles (e com eles) prestados.

Esperamos que os resultados aqui apresentados, bem como as proposições e recomendações registradas, possam inspirar a atuação dos diversos agentes e órgãos envolvidos com a PNASI consolidando o direito reservado e reconhecido aos povos indígenas a uma atenção diferenciada.

Ivar Luiz V. Busatto
Coordenador Geral da OPAN

Fonte:  http://amazonianativa.org.br/biblioteca/2/3/36.html

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A cor da relação. Mulheres negras e as dificuldades com romances sérios


Postado 4 de setembro de 2013 por Redação kultafro em Comportamento

Por Pakuera Kultafro
Quatro mulheres lindas e bem-sucedidas confirmam a tese que alguns estudos já abordaram: as negras têm mais dificuldade em engatar romances sérios

Por Flávia Duarte – Revista do jornal Correio Braziliense

O assunto é tão delicado que poucas têm coragem de tocar nele. Falar de desprezo, de se sentir preterida e de solidão abre feridas, joga na cara o preconceito que acompanha as mulheres negras ao longo de sua história. Ademais toda a discriminação que as tornam uma das personagens mais vulneráveis da sociedade — são elas que ganham menos, têm a menor escolaridade e ocupam os postos menos nobres do mercado de trabalho —, a cor da pele as obrigam a traçar um caminho mais longo e dolorido em busca do amor. Mais tortuoso ainda quando o destino almejado é o altar. “As mulheres pretas se casam mais tarde, apresentam maior índice de celibato e demoram mais para terem um relacionamento”, afirma a socióloga Bruna Pereira, pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem), da Universidade de Brasília.

As estatísticas no Brasil que confirmam a tese do abandono como consequência da raça são raras, mas a discussão é antiga. Professora no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina e doutoranda na PUC/SP, Maria Nilza da Silva diz que, na década de 1950, alguns teóricos tentavam entender o fenômeno de desvalorização da mulher negra, pouco vista como uma opção para ser esposa e parceira. “Já naquela época, para ser escolhida nesse contexto da conjugabilidade, a mulher negra acaba se relacionando com um homem de classe social mais baixa. Para ser escolhida, ela deveria ter alguma vantagem.” 
Motivada pelo tema, Maria Nilza também pesquisou a menor oferta de parceiros disponível. Isso foi nos anos 1990, mas a professora defende que pouca coisa mudou de lá para cá. “A mulher negra continua discriminada em vários segmentos, inclusive no matrimônio. A possibilidade de encontrar um companheiro ou um parceiro é menor para ela”, afirma.

Intrigada pelo fato de as mulheres negras serem mais solitárias do que as brancas, a pedagoga e mestre em ciências sociais Claudete Alves resolveu, durante um ano e meio, mapear 1.127 casais em São Paulo. Desses, apenas 418 eram formados por homem e mulher negros. Uma das explicações para o número tão reduzido de casais de mesma raça estaria no fato de que os negros que ascendem socialmente querem se relacionar com as brancas. Eles buscam na união com outra raça uma forma de reforçar sua situação de suposto status. “O negro quer ter o que o branco tem e isso inclui a mulher branca. Muitos querem filhos com a pele mais clara do que a deles para não sofrerem o preconceito que eles também sofreram”, resume Claudete.

A rejeição também parte dos homens brancos. No Brasil, a negra é a minoria nos espaços culturalmente reservados para quem tem pele clara. Isso automaticamente as deixaria em desvantagem em relação às brancas.

Dos 18 casamentos civis que Claudete presenciou ao longo da pesquisa, apenas três uniram pares de negros. Uma dificuldade de encontrar um companheiro de mesma cor foi confirmada por todas as 11 mulheres negras que a pesquisadora ouviu na época. Entre os relatos, muitas contavam que, quando mais jovens, eram procuradas pelos negros apenas para iniciação sexual. Quando engravidavam, eles dificilmente assumiam o filho. Era uma relação de fim anunciado. Confirmação do estereótipo da negra sexual, que carrega até hoje, em muitos casos, uma pesada herança da escravidão, quando elas eram escolhidas para saciar o desejo dos brancos. Para o romance dar certo, eles exigiam moeda de troca. “Elas ainda diziam que, quando conseguiam ficar com negros, tinham que sustentá-los. Em geral, eles eram de escolaridade inferior e mantinham práticas sociais diferenciadas das delas.”

Um preterimento que é observado em todas as classes sociais. Quem confirma são mulheres lindas, bem-sucedidas, da classe média, que cresceram no Plano Piloto. Daniela Luciana, Jaqueline, Denise e Marília são negras. Também sentem o peso histórico que carregam com a cor. Confirmam o preconceito, a dificuldade de encontrarem um par em pé de igualdade com as mulheres brancas. Um problema que não é delas. Vem do outro. “Essas mulheres precisam entender que essa dificuldade é fruto de um problema social e não pessoal. Elas se inferiorizam como se não fossem bonitas ou interessantes”, lamenta Paula Pereira, pesquisadora-colaboradora do Nepem. Daniela Luciana, Jaqueline, Denise e Marília reconhecem que a dificuldade de romper as amarras do racismo não são delas, mas nem por isso enfrentaram sempre com tranquilidade os olhares de preconceitos.

“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.”

Bell Hooks é ativista negra e feminista norte-americana

Um par da mesma raça
 (Janine Moraes/CB/D.A Press)
Janaína Bittencourt tem 24 anos. Foi criada no Plano Piloto. Ela e o irmão eram os únicos negros da escola particular em que estudava. Seu último relacionamento durou mais de dois anos, com um homem de mesma cor. Solteira, tomou uma decisão: quer um marido negro.

“Demorei muito para me enxergar como uma pessoa potencialmente bonita. Na fase escolar, não me lembro de ter sofrido aquele racismo duro. Passei a enxergar isso por volta de 13, 14 anos, quando a gente se interessa pelos meninos. Todo mundo tinha um parzinho, menos eu. Atribuía isso ao fato de não ser bonita. Identificava que tinha uma estética diferente daquela que na escola era importante, como o cabelo liso, por exemplo. Enfim, essas coisas que, depois de adulto, a gente aprende a relevar. O meu papel, naquela época, era o da amiga que faz a ponte para as outras ficarem na festinha.

Os homens mais velhos me notavam mais. Acredito que sempre despertei o apetite sexual deles. A abordagem comigo era sempre muito direta, não tinham o cuidado que tinham com as meninas brancas. É isso que pega na autoestima. Se eu ficasse com alguém, nunca tinha brecha para virar uma coisa a mais.

A família do branco tem sempre uma resistência maior. Era sempre um momento de tensão. Ficava na dúvida em dizer: ‘Avisa a seus pais que sou negra’. O primeiro rapaz pelo qual me apaixonei, aos 18 anos, era muito tranquilo em relação à questão racial. Quando fui conhecer a família dele, porém, a mãe dele ficou meio chocada, não conseguiu disfarçar. Pensei que era coisa da minha cabeça. Mas, depois disso, ele terminou. Dois meses depois, estava namorando uma menina branca.

O que muita gente não enxerga é que a preterição das mulheres negras é algo que a sociedade nos ensina. A mulher negra supostamente é boa para o sexo e para as relações superficiais, mas não para o casamento. Nesse jogo, as mulheres ficam relegadas até para os negros. É uma pequena morte você não ser viável para ninguém, nem para quem deveria ser seu par natural.

Eu me relacionei com homens brancos, mas o custo era muito pesado.  Não tinha liberdade de sair com as minhas tranças, se elas não tivessem com a manutenção certinha na raiz. A sociedade não está preparada para a estética negra. O homem negro, talvez por ter uma mãe negra em casa, entende que o cabelo crespo amassa quando você dorme. Com o homem branco, é sempre um processo. Tinha que acordar mais cedo,  passar uma água para o cabelo ficar mais ou menos. Namorar um homem branco é ter que passar por essas questões que não sei se quero. Demorei muito para me enxergar como uma pessoa bonita, passível de relacionamento, e agora não tenho que passar por tudo isso de novo.

O casamento implica, inclusive, ter filhos, e filhos negros. E, para algumas pessoas, isso é um terror. Talvez nem associando à cor da pele, mas ao cabelo duro. Por isso, muitas mulheres negras começam a amenizar os traços para entrar em uma estética tida como mais bonita. Eu quero que meus filhos sejam negros, que tragam na pele o simbolismo que minha família tem. Sou criticada quando falo isso. Uma tia falava que a gente tinha que ter essa preocupação de amenizar os nossos traços. Acho isso uma violência.

As mulheres brancas, via de regra, se casam mais, consolidam família, permanecem mais tempo casadas. Antigamente, para a mulher branca, o futuro almejado era ser esposa e dona de casa. Já as mulheres negras tinham que trabalhar para se sustentar. Para as negras, que durante muito tempo nem poderiam se casar, a família acontecia sem a presença de um homem. Por isso, entendo que exista essa fixação de se casar no papel. É a afirmação de uma afetividade que sempre lhes foi negada.”

Militante do afeto
 (Zuleika de Souza/CB/D.A Press)
A baiana e servidora pública Daniela Luciana Silva tem 42 anos. Negra, viveu um casamento intrarracial e conta que já foi confundida com a babá da filha, Maria, 7 anos. Ela diz que as mulheres negras precisam trilhar um longo caminho na busca pela autoestima.

“Nasci contrariando as estatísticas, nasci classe média. Sou moradora do Plano Piloto, onde estão poucas negras. Os homens não abordam as negras com a mesma frequência que abordam as brancas. A cor é uma marca de pobreza, de alguém menos casável. Estudei em escola particular, na Bahia, onde eu era a única negra. Com 15 anos, tinha várias paqueras, mas os meninos nunca me chamavam para dançar, por exemplo. Meu primeiro namorado era negro. Chamo de namoro por licença poética. Foram alguns beijos durante as férias. Levei um tempão para namorar de novo.

As mães de mulheres negras nos educaram para entender que, quando você saísse de casa, poderia ser alijada pelo racismo. Elas diziam que os homens não iam nos valorizar. Por isso, a mulher negra também é mais desconfiada. Você se torna menos ousada, menos espontânea. E, às vezes, acaba sendo arrogante para compensar as origens.

Até que, com 18 anos, fui fazer faculdade em Salvador. Lá, eu não era a minoria. Ao contrário, era modelo do que era bonito. Quando vim para Brasília, achava que não ia me casar, que não tinha mais chance. Mas me casei com 34 anos. Ele era branco e tinha 23. Ele nunca permitiu que apontassem essas marcas raciais entre a gente. Às vezes, notava que as pessoas nos olhavam como se quisessem dizer: ‘Como essa mulher está com esse rapaz?’. Imagina! Eu era mais velha e ainda era preta. Estamos separados desde 2010, mas nos casamos apaixonados, por amor.

Para a mulher negra, é muito difícil se relacionar. O que percebo, como militante e como mulher, é que todo mundo quer aprovação. O homem negro também. E ele faz escolhas. Em alguns casos, escolhe a mulher branca, porque também quer aceitação diante do grupo no qual é minoria, como acontece no Plano Piloto. Os que ascendem socialmente acabam frequentando lugares em que a maioria é de gente branca, então ele pode fazer suas escolhas afetivas com mais facilidade do que a mulher negra.

No entanto, se você define que preto só se relaciona com preto e branco só com branco, fica muito difícil encontrar parceiros. Tem homens que nunca vão ficar com uma mulher negra, porque ela não faz parte do gosto deles. Ele não quer alguém que carregue o componente da herança genética e familiar pobre. Ele quer uma coisa leve, sem a complexidade que é lidar com a questão histórica da raça, do preconceito. O problema não é nosso. É que nós temos mais elementos negativos nesse jogo. Não somos a escolha padrão de nenhum homem menos corajoso, menos seguro de si.

Eu não tenho essa restrição, mas há meninas que querem se relacionar só com negros porque decidiram marcar uma posição política também no campo afetivo. Não acho errado. Eu quero me casar de novo. Sei o que quero e do que preciso. O que nos diferencia das mulheres brancas é que temos um trabalho muito maior para chegarmos por inteiro e seguras em um relacionamento. Sou militante do afeto. A sociedade é que nos leva a aceitar pouca coisa, mas eu sei o que eu mereço e não aceito.”

Amor entre raças
 (Janine Moraes/CB/D.A Press)
A antropóloga Denise da Costa, 29 anos, nunca pensou em se relacionar com um homem branco. Até esbarrar com aquele que seria seu marido. Casada há três anos, não nega que teve medo de ser apresentada à família dele e, volta e meia, enfrentam juntos algumas situações de preconceito.

“Antes do meu marido, só tive namorados negros. Não achava que fosse namorar um homem branco por medo de não me aceitarem. Tanto que, assim que comecei a namorar o Daniel, meu maior medo era de a família dele me rejeitar de alguma forma. Não aconteceu. Nós, mulheres negras, sabemos que nem sempre podemos ser aceitas nos ambientes que frequentamos e que isso também acontece nos relacionamentos afetivos.

Meu primeiro namorado, aos 15 anos, era negro. Eu não era muito abordada nessa época. Olhava para as minhas amigas brancas e pensava: ‘Acho que sou mais bonita do que elas, mas os meninos estão olhando mais para elas.’ Hoje me sinto com a autoestima mais elevada.

De maneira inconsciente, evitei me relacionar com homens brancos. Eu circulava por espaços onde a presença do negro era maior. Acho que era uma proteção mesmo, de achar que não era o meu lugar. Mas estava solteira e queria conhecer pessoas interessantes. Foi quando comecei a namorar o Daniel, despretensiosamente. Nós nos conhecemos na faculdade. Para ele, foi uma experiência nova também. Ele nunca tinha namorado uma mulher negra.

A questão racial acabou sendo imposta na vida dele. Por eu usar meu cabelo natural, já aconteceu de as pessoas gritarem comigo na rua para eu cortá-lo. Meu marido fica indignado. Teve também um outro episódio, que aconteceu no condomínio de luxo que a irmã dele mora, em Minas Gerais. Na hora da identificação, o porteiro falou: ‘Seu irmão está aqui com uma morenona’, de um jeito muito agressivo. Por que ele não pensou que eu era mulher dele e respeitou? Existe um0 racismo muito sutil no Brasil, que é tão subjetivo que você não consegue desmascarar e dar nome àquilo que está acontecendo.  E existe esse racismo escancarado. Daniel fica nervoso nessas situações, xinga, mas eu digo: ‘Não mexe com isso não.’

Fico pensando como vai ser meu filho com o Daniel. Sei que terão expectativas sobre como ele vai nascer, se será branco, mestiço, com cabelos crespos ou não. Mas o importante é que eu quero ensinar a ele as coisas que aprendi sobre racismo. Tarefa nem um pouco simples.”

A beleza da minoria
 (Janine Moraes/CB/D.A Press)
A auditora Marília Santos, 26 anos, sempre circulou em meios em que era a minoria. Está solteira há sete meses, depois de um relacionamento de quase um ano com um homem de mesma raça. Estilosa e linda, explora seu diferencial para chamar a atenção. Sempre atraiu olhares e reconhece que nem todas as negras têm as mesmas boas experiências para contar.

“O que sempre achei diferente é a abordagem do negro e do branco. O negro parece que se sente no direito de chegar em você porque você também é negra. Ele já fala assim: ‘Nós que somos dessa raça bonita…’ A raça não pode ser um quesito para ficar junto. Sempre convivi com homens brancos. Em qualquer reunião que vá, provavelmente, sou a única negra. Até por isso acho que a maioria dos meus relacionamentos foi com homens brancos. Namorei cinco vezes: dois negros e três brancos. Comecei a me sentir atraída por negros quando já era mais velha, porque não tinha contato com os negros.

Nos meus relacionamentos, nunca passei por situações de preconceito, mas já tive medo. Quando a gente toma consciência da nossa raça, temos medo. Quando era pequena, não me preocupava se era negra ou era branca, mas, quando estamos em um relacionamento, tememos não pelo rapaz com quem estamos saindo, mas pela família dele. Se ele quis namorar com você, é porque ele te aceita da cor que é, mas a família dele não é obrigada a pensar da mesma forma.

A primeira imagem que o homem tem é de que a negra é muito sexualizada. Acha que nós gostamos de uma abordagem mais ríspida, e não é assim. Também existe uma abordagem maior por parte dos estrangeiros. Ser negra está na moda.

Não acontece comigo, mas acontece com outras negras, de se sentirem excluídas em certos ambientes. Normalmente, não sinto essa coisa, porque já chego querendo ser diferente. Nem mais nem menos, mas chamando a atenção. Muitas negras querem ser iguais a todas as pessoas da festa e aí elas se sentem excluídas. Já fui muito questionada e até excluída do meio. Me acusam de não entender o movimento. Eu não vivi essa realidade. Posso respeitar, apoiar a causa, mas não lutar com a mesma força de alguém que sofreu.” 

Fonte: http://www.kultafro.com.br/2013/09/a-cor-da-relacao-mulheres-negras-e-as-dificuldades-com-romances-serios/

Território Awá Guajá. Finalmente a desintrusão, por Egon Heck

Por , 07/01/2014 09:59
Criança Awá. Foto: Survival
Criança Awá. Foto: Survival

“Estamos todos torcendo, não sem certa apreensão para que finalmente aconteça a retirada dos não índios do território Awá Guajá. Em especial esperamos uma ação firme do governo com relação aos exploradores que enriqueceram às custas do roubo de madeira, plantação de droga e tenha uma ação justa e digna com relação aos pobres que acabam sofrendo mais. Que sejam com a máxima brevidade assentados os que querem trabalhar na terra. E que os Awá sejam livres do pesadelo e sofrimento que significou essas décadas de invasão e omissão”, escreve Egon Heck, Cimi-MS, ao enviar o artigo que publicamos a seguir. Eis o artigo

IHU On-Line – “Cardozo explicou que essa ação de “desintrusão” vem sendo estudada há algum tempo, mas que era preciso passar a Copa das Confederações e a visita do Papa, que mobilizaram muitos efetivos.” (O Globo 4/08/2013– Mirian Leitão)

Além dos motivos alegados, certamente serão muitos outros os motivos da demora da execução da decisão da Justiça do Maranhão e do cumprimento da Constituição. Dentre os motivos principais está a frontal oposição do agronegócio, que inclusive se manifestou contra a desintrusão por ocasião de suas manifestações em Brasília, dia 11 de dezembro passado.

Para a execução da ordem de desintrusão o governo montou uma coordenação integrada por vários ministérios e mais de uma dezena de órgãos do governo.

O Ministro da Justiça afirma que contam com a experiência de Marawaitsédé, terra Xavante desintrusada no ano de 2012.

Lembra o Ministro da Justiça que “ é preciso entender que se fala terra indígena, mas pela lei brasileira a terra é da União. Portanto, proteger esses índios, expulsar os madeireiros e defender essa mata é do interesse dos brasileiros.”( O Globo- idem)

E não são poucos os interesses daqueles que não podem ver uma árvore em pé. Se calcula que serão mais de 40 mil toras cortadas na mata dentro da terra indígena. Elas serão inutilizadas, promete o governo.

Desintrusão e omissão
“O povo mais ameaçado do planeta”, como são considerados os Awá Guajá, numa campanha da Survival Internacional, parece estar próximo de ver-se livre dessa grave ameaça de genocídio. A desintrusão deve
ter começado hoje. Os frequentes adiamentos e omissão tem agravado muito essa operação e as previsíveis resistências, especialmente do poder econômico e políticos.

É importante lembrar que situações como essa, assim como a gravíssima realidade do Mato Grosso do Sul, se agravam a cada dia que se passa.

Os Awá, que também são do tronco linguístico Tupi-Guarani, foram visitar seus parentes Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, especialmente os acampamentos na beira das estradas. Nessa ocasião entregaram flechas, que estavam tão subjugados pelos brancos, porque tinham poucas flechas.

O país tem pressa. A bola vai rolar e as eleições estão na porta. Essas manchas na imagem da nação não podem se perpetuar.

Em 1978, quando o Estatuto do Índio previa a demarcação de todas as terras indígenas, diante da total inoperância e omissão do Estado brasileiro, os povos indígenas Kaingang e Guarani do Sul do país, enfrentaram os invasores, os políticos, a polícia, a Funai e eles mesmos colocaram mais de 10 mil famílias de brancos para fora de suas terras. Foram ações heroicas, corajosas, destemidas. Em Nonoai- RS, por exemplo um pouco mais de mil índios colocaram para fora de sua terra mais de dez mil pessoas que haviam se estabelecido nas terras indígenas, ou mesmo sendo aliciados ou estimulados pelo modelo político a invadirem essas sagradas terras indígenas. Das famílias que se estabeleceram à beira da estrada, originou-se o movimento dos Sem Terra. O governo queria deportar as famílias para a Amazônia.

Conquista e resistência
Depois das intensas mobilizações indígenas por ocasião da Constituinte e conquista de seus direitos na Constituição, em 1988, só em 2013 os povos indígenas tiveram uma mobilização tão intensa. Desta vez foi para evitarem que seus direitos fossem retirados da Constituição. Uma avalanche de ações contra os direitos indígenas, foram arremessadas como flechas incendiarias, especialmente do poder legislativo e do governo. Essa conjuntura explosiva e genocida só não se baniu os direitos indígenas e rasgou a constituição graças à intensa e permanente mobilização indígena, desde as aldeias ate o Palácio do Planalto e o Congresso nacional.

Os cenários são de que esses embates continuem nesse ano. Porém tem a Copa do mundo e as eleições, que serão prioridade número um para o país.

Fonte:  http://racismoambiental.net.br/2014/01/territorio-awa-guaja-finalmente-a-desintrusao-por-egon-heck/#more-133375

BA – Lideranças do Quilombo Rio dos Macacos foram espancadas e presas pela Marinha em Aratu, Salvador

Por , 07/01/2014 07:47
Dilma Rousseff promete mais uma vez a Rose Meire e a representantes da comunidade resolver a situação do Quilombo. Atrás, da irmã, Ednei.
Na foto, Dilma Rousseff prometia mais uma vez a Rose Meire e a representantes da comunidade resolver a situação do Quilombo. Atrás, da irmã, Ednei.

Tania Pacheco* – Combate Racismo Ambiental

Nesse terceiro fim de ano que a presidente da república passou em Salvador, a comunidade Quilombo Rio dos Macacos foi duramente reprimida, após dias de um clima bastante tenso. Segundo suas lideranças, a Marinha se armou como se estivesse numa guerra, com mais de 50 fuzileiros com coletes e armas em punho. E ontem, 6 de janeiro, um sargento da Base Naval de Aratu abusou da autoridade de forma inequívoca.
Principais lideranças do Quilombo, os irmãos Rosi Meire Messias dos Santos e Ednei Messias dos Santos, foram espancados e presos no início na tarde, quando passavam pela guarita. Rosimeire foi arrastada pelos cabelos, chutada e esmurrada. Ednei foi igualmente agredido.  Ambos foram libertados somente à noite, a partir da atuação dos advogados da AATR; do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP); do deputado federal Luis Alberto; do Secretário de Promoção da Igualde Racial (Sepromi), Elias Sampaio; e dos protestos e resistência da própria comunidade.

O deputado Luis  Alberto e o Secretário Elias, que estiveram com o comandante da Base, disseram que viram filmagens da própria Marinha que comprovam a agressão violenta aos comunitários, quando estão entrando na área ocupada pela Base, em direção ao Quilombo.

Tudo isso deixa mais que óbvio que, além da titulação, precisamos exigir de imediato uma entrada alternativa para a comunidade, de forma a impedir a continuação desses constrangimentos, arbitrariedades e violência.
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*Com informações de Maria José Pacheco, do Conselho Pastoral dos Pescadores.

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À noite, a Marinha distribuiu a Nota Oficial que pode ser lida abaixo:
O Comando do 2º Distrito Naval informa que, por volta das 16h00 de hoje (06), foram detidos, no tombo pertencente à União, situado no Complexo Naval de Aratu e administrado pela Marinha do Brasil, o Sr. Edinei Messias dos Santos e a Sra. Rosimeire Messias dos Santos, moradores da comunidade conhecida como Rio dos Macacos.

As detenções foram motivadas pelas ameaças proferidas pelo Sr. Edinei contra as sentinelas de serviço e em razão do comportamento violento da Sra. Rosimeire, que tentou, inclusive, apoderar-se da arma de um dos militares. Os dois foram liberados após a situação ter sido controlada.
Um Inquérito Policia Militar (IPM) será instaurado, com apoio do Ministério Público Militar, a fim de apurar o ocorrido.

Fonte: http://racismoambiental.net.br/2014/01/ba-liderancas-do-quilombo-rio-dos-macacos-foram-espancadas-e-presas-pela-marinha-em-aratu-salvador/#more-133343

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A KATIA ABREU DE CUECAS

José Ribamar Bessa Freire
05/01/2014 - Diário do Amazonas


Demétrio Magnoli, doutor em Geografia, nunca pisou o chão da aldeia Tenharim em Humaitá, sul do Amazonas, invadida neste natal por madeireiros e outros bichos ferozes. Nunca cheirou carne moqueada de anta cozida no leite de castanha, nem saboreou essa iguaria refinada da culinária Kagwahiva. Jamais ouviu narrativas, poesia ou o som melodioso da flauta Yrerua tocada na Casa Ritual - a Ôga Tymãnu Torywa Ropira. Nem assistiu a festa tradicional - o Mboatava. Para falar a verdade, ele nunca viu um índio Tenharim em toda sua vida, nem nu, nem de tanga ou em traje a rigor. Nunca.
Não sabe o que perdeu. Não importa. O papa também nunca esteve no inferno, nem viu o diabo chupando manga, mas discorre sobre o tema. Desta forma, Magnoli se sentiu à vontade para escrever, na quinta feira, A Guerra do Gentio, no Globo (02/01), no qual comenta o recente conflito, numa área que desconhece e dá palpites sobre a identidade de índios, que nunca viu. Quando a gente carece de experiência e de vivência pessoal, procura as fontes ou quem estudou o assunto. O papa, por exemplo, lê a Bíblia e os teólogos. O que leu Magnoli sobre os Tenharim?  
Nada de consistente. Muita gente boa escreveu sobre eles, com uma reconhecida produção etnográfica. Nimuendaju descreveu os Parintintin, com quem conviveu nos anos 1920, no rio Madeira. O gringo Waud Kracke redigiu a tese na Universidade de Chicago, nos anos 1970, depois de gravar os cantos e narrativas na língua Kagwahiva, que aprendeu a falar. Miguel Angel Menéndez viajou pelo Tapajós para a tese de doutorado na USP, no final dos anos 1980. Edmundo Peggion fez uma etnografia dos Tenharim e defendeu sua tese sobre a organização Kagwahiva, na USP, publicada em 2011.
Cacique motoqueiro
O geógrafo Magnoli, formado também pela USP, nem seu souza. Ignora-os, assim como desconhece a documentação dos arquivos. Menciona os jesuítas e o ciclo da borracha, sem apoio de qualquer fonte histórica. Não consultou na Biblioteca de Évora o manuscrito de Manoel Ferreyra, que percorreu a região em meados do séc. XVIII. Para isso, nem precisa viajar a Portugal. Basta ir ao Museu do Índio, no Rio, onde estão também microfilmes de relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) dos anos 1920-30 redigidos pelo inspetor Bento Lemos, que fornece dados históricos sobre os Tenharim e outros povos Kagwahiva, conhecidos até 1920 pelo nome genérico de Parintintin.
Ou seja, o cara não pesquisou nos arquivos, não leu os antropólogos, nunca ouviu um Tenharim, mas usa a página nobre de um jornal de circulação nacional para cagar regras - essa é a expressão - sobre os Kagwahiva. Pontifica sobre eles num texto que pretende ser infalível como uma encíclica. Insinua que a morte de Ivan Tenharim, na estrada, foi acidente de trânsito como quer a polícia, e não assassinado em uma emboscada como afirmam os índios. Aliás, segundo ele, o "cacique motoqueiro" nem índio é. Rouba-lhe a identidade depois de morto, falando urbi et orbe como o papa:
"O cacique motoqueiro dos Tenharim, as aldeias indígenas que vivem de rendas de pedágios clandestinos, os índios terena e guarani que cultivam melancias em “terras sagradas”para vendê-las no mercado não são “povos da floresta”, mas brasileiros pobres de origem indígena".
Demétrio dixit. Qual o critério que ele usa para do alto das suas tamancas trombetear quem é índio e quem não é? O mercado. Eis aí: o mercado opera o milagre da transfiguração de índios em 'brasileiros pobres'. Vendeu uma melancia? Então deixou de ser índio - afirma o contundente Magnoli. Sem o respaldo das ciências sociais, seu discurso deriva para o senso comum. E o senso comum, no caso, se chama Kátia Abreu, senadora, pecuarista e articulista do caderno Mercado da Folha de São Paulo, porta-voz do agronegócio.
Cartilha de Kátia
Magnoli reza pela cartilha de Katia Abreu, a quem segue como um cachorrinho a seu amo. Copia dela ipsis litteris, sem aspas, até a negação da identidade indígena. Só troca 'silvícola' por 'gentio', mas a 'matriz epistemológica' é a mesma: o interesse do agronegócio nas terras indígenas. Se a venda de uma melancia transforma o 'gentio' em 'brasileiro pobre', então a terra onde a plantou deixa de ser indígena e fica assim liberada para os donos da soja, da cana e do gado. Magnoli não questiona a terra concentrada em mãos de um único fazendeiro, mas o faz quando se trata de comunidades indígenas, manifestando maliciosamente fingida dúvida:
 “Muita terra para pouco índio”, diz uma sabedoria popular cada vez mais difundida, mesmo se equivocada" - escreve Magnoli. Que 'sabedoria' é essa? Que 'popular' é esse? Quem difunde? Se é equivocada, porque ele e outros formadores de opinião espalham tal equívoco? Magnoli repete a mesma lenga-lenga da Katia Abreu - a terra é secundária, o que os índios, "necessitam é, sobretudo, de postos de saúde e escolas públicas". Critica o termo oficial "desintrusão" para descrever a remoção de todos os não índios das terras indígenas, porque não aceita chamá-los de "intrusos".
Uma vez mais reproduz o discurso de Kátia Abreu que igualmente não conhece os índios nem de vivência, nem de leitura ou pesquisa, mas também caga regras, que Magnoli copia e o leitor lê, comprando gato por lebre. Copia até o método - a "abreugrafia" - que consiste em dispensar o trabalho de campo e o contato direto com os índios, que nunca são ouvidos contrariando uma regra básica do jornalismo. Reforça preconceitos boçais e chega a ofender os índios quando reproduz acriticamente o discurso do "senso comum":
"Edvan Fritz, almoxarife, deu um passo conceitual adiante: “Eles [os índios]  vêm à cidade, enchem a cara, fazem baderna e fica por isso. Índio é protegido pelo governo que nem bicho, então tem de ficar no mato, não tem que viver em dois mundos, no nosso e no deles” - escreve Magnoli.
O outro lado
É isso que Magnoli transcreve. No entanto, o bom jornalismo manda ouvir o outro lado. Por que quando no "outro lado" estão os índios, quase nunca eles são ouvidos, mesmo quando são bilíngues e falam português? Duas excelentes jornalistas - Elaíze Farias e Kátia Brasil - publicaram no portal Amazônia Real, a entrevista do índio Ivanildo Tenharim, refugiado no quartel do Exército em Humaitá, depois da invasão à aldeia, onde ele dá a sua versão sobre os recentes ataques:
“Existem muitos madeireiros que têm raiva da gente porque eles não podem invadir a reserva para tirar madeira. Tempos atrás, com as operações da Funai e de outros órgãos, eles tiveram carros e tratores apreendidos e ficaram com mais raiva. O que eles fizeram foi aproveitar o momento para se unirem contra nós, se articulando com a população. Foram eles que bancaram o protesto de sexta-feira, quando invadiram as aldeias”.
A Polícia confirma as informações do índio: "Identificamos fazendeiros, madeireiros e funcionários tentando invadir a Terra Indígena Tenharim - declarou o tenente coronel Everton Cruz. A expedição punitiva que saiu de Apuí no dia 26 de dezembro contou com 29 caminhonetes "para fazer buscas aos três homens desaparecidos" - informou o delegado Robson Janes, que apontou também a presença de madeireiros e fazendeiros. Para a líder indígena Margarida Tenharim as acusações de que os três homens foram mortos por índios não tem provas: "É um absurdo. Não fazemos isso".    
Mas a voz dos índios não encontra eco no espaço do jornal gerenciado por Demétrio Magnoli, que aproveita para atacar Lula e o que chama de lulismo, responsáveis - segundo ele - pelos conflitos. Desrespeita, além disso, Dilma Rousseff, a quem denomina depreciativamente de "presidente de direito", em oposição a Lula que seria o  "presidente de facto". Seu ataque é tão rasteiro e primário que, lendo-o, dá vontade de votar na Dilma, mesmo sabendo de que Kátia Abreu faz parte de sua base aliada. Desconfio que se trata de propaganda subliminar.
Demétrio Magnoli, militante de esquerda do grupo trotskista Liberdade e Luta (LIBELU) nos anos 1980, não ouve o outro lado porque trocou de lado. Agora quem dá as cartas para ele é o agronegócio. Madalena arrependida, Demétrio Magnoli podia ser a Kátia Abreu de paletó e gravata, mas é a Kátia de cueca, que ficaria limpa se lavada nas águas ainda claras do igarapé Preto da aldeia Tenharim.
P.S. Filho de jornalista, pai de jornalista, ele mesmo jornalista, morreu na sexta-feira, vítima de infarto, Mário Morel (1937-2014), profissional respeitado e querido nos lugares onde trabalhou (Ultima Hora, Diário da Noite, TV Excesior  TV Rio e TVE). Criou o formato do programa "Sem Censura". O pai Edmar Morel foi um dos maiores repórteres que o Brasil já teve. O filho Marco Morel é conhecido historiador e jornalista. O obituário foi registrado pela Folha de São Paulo, em texto assinado por Italo Nogueira. Daqui desta coluna publicada no Diário do Amazonas, manifestamos nosso pesar à família enlutada.
Fonte: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1067